CRÓNICA EM TEMPO DE
GUERRA
1. – Escrevo esta ‘crónica’
enquanto decorre o dramático processo de ‘negociações’ entre os países e instituições credores da
Grécia e o governo deste país, eleito com um mandato para pôr termo à
austeridade que arruinou a economia do país e provocou uma grave crise social.
A presença do grande
capital financeiro no ‘governo’ da Europa do capital tornou‑se
indisfarçável com a nomeação (em 2012) de Lucas Papademus como Primeiro‑Ministro
da Grécia e de Mario Monti como Primeiro‑Ministro da Itália. Nem um nem outro
foram eleitos para os parlamentos dos seus países, e muito menos foram eleitos
pelo povo para exercerem as funções que lhes foram cometidas. São ambos banqueiros,
nomeados para esta ‘comissão de serviço’ na vida política.
Mario Monti foi
assessor do Goldman Sachs quando Mario Dragui era seu Director para a
Europa, durante o período em que o banco americano orientou (regiamente pago) a
‘batota’ feita pelo Governo grego. Não deixa de ser simbólico o facto de Mario
Monti ostentar também no seu currículo a actividade como conselheiro da Coca‑Cola.
Tal como Mario Draghi
(que foi Director Executivo do Banco Mundial entre 1985 e 1990 e Governador do
Banco de Itália, depois de, na qualidade de Director do Goldman Sachs,
ter ajudado o Governo grego a ludibriar as autoridades da UE), Lucas Papademus
colaborou, como Governador do Banco Central da Grécia, na falsificação das
contas públicas deste país. Ele e Mario Monti pertencem à Comissão
Trilateral.
É inequívoco que os
governos chefiados por Papademus e por Monti foram governos de banqueiros,
apresentados como governos de técnicos, como se não fosse completamente
absurdo admitir que pode haver uma solução técnica para problemas que
são, essencialmente, problemas políticos. A verdade é que, não sendo juntas
militares, eles foram verdadeiras juntas civis (Serge Halimi),
constituídas à margem das regras do jogo democrático, humilhando os povos da
Grécia e da Itália e traduzindo a menoridade da política e a negação da
democracia.
A história recente da Grécia (falei atrás, nomeadamente, dos ‘negócios’
relacionados com os Jogos Olímpicos de Atenas e com a compra de submarinos,
fragatas e aviões à Alemanha, à frança e ao RU) mostra bem as consequências de
um país ser governado pelo capital
financeiro e seus agentes.
E é esta história, e não a preguiça do povo grego ou quais quer outros
pecados próprios de um povo incapaz de auto-governo, que explica o
endividamento da Grécia, que em nada modificou as estruturas económicas,
políticas e sociais que poderiam ajudar a desenvolver a sua economia,
proporcionando mais emprego, mais riqueza e mais bem-estar ao povo grego, que,
evidentemente, não foi parte activa naquelas histórias mafiosas.
Mas
foi o povo grego que foi chamado a pagar a dívida.
Nessa altura, Habermas foi duro para com o governo alemão. Escreveu ele:
«A prioridade das preocupações nacionais [alemãs] nunca se manifestou com tanta
clareza como na resistência robusta de uma Chanceler que bloqueou durante
semanas a ajuda europeia à Grécia e o mecanismo de emergência para salvar o
euro». E ‘acusou’ Merkel de não ser capaz de ultrapassar «a consideração
oportunista dos joguinhos da política interna», cedendo ao «medo das armas de
destruição maciça da imprensa tablóide» (esquecendo «a força destrutiva das
armas de destruição maciça dos mercados financeiros») e «bloqueando uma acção
conjunta da União que teria apoiado atempadamente a Grécia contra a especulação
que visava a bancarrota do estado».
Com
razão, Habermas confessa: «apercebi-me, pela primeira vez, da possibilidade
real de um fracasso do projecto europeu».
2. -
Logo que começou a ficar claro que as eleições legislativas de 21.1.2015 seriam
ganhas por um partido que lutava contra as políticas
de austeridade que conduziram a Grécia a uma verdadeira tragédia
humanitária, a intervenção externa e as ameaças ao povo grego por parte de
altos dignitários da UE e dos ‘países dominantes’ tornaram-se mais evidentes.
Três
dias antes do acto eleitoral, Mario Draghi, intervindo na qualidade de
Presidente do BCE, avisou que o programa de quantitative
easing (alívio quantitativo, na tradução literal: a compra, durante
determinado período, de 60 mil milhões de euros por mês de títulos de dívida
pública de países do euro) só seria aplicado à Grécia mediante certas
condições. Os gregos compreenderam: se não comessem a sopa toda que Bruxelas
lhes põe no prato, têm o caldo entornado… Mas não votaram em quem os ameaçava.
Dois
dias depois das eleições, o Presidente do Eurogrupo afirmou, segundo os jornais
(27.1.2015), que «os gregos têm de compreender que os problemas fundamentais da
sua economia não desapareceram só porque houve uma eleição». Traduzindo: não
adianta terem feito, nas eleições, uma escolha diferente da que nós queremos,
porque nós vamos boicotar a vossa escolha.
Neste
mesmo dia, a Agência Moody’s proclamou, do seu trono imperial, que a vitória do
Syriza «influía negativamente nas perspectivas de crescimento». Uma ‘sentença’
terrível para um povo que viu o PIB baixar cerca de 25% em resultado das
políticas colonialistas impostas pela troika.
O
social-democrata alemão, Martin Schultz, Presidente do Parlamento Europeu, não
terá sido ‘politicamente correcto’ quando disse que preferia um «governo de
tecnocratas» ao governo que acabava de ser eleito pelo povo grego. Mas o menos
disse o que pensava, para nós pesarmos bem a importância da democracia
representativa para certos democratas. Pelos vistos, ele gostava mais de uma
outra «junta civil» como a liderada pelo banqueiro Lucas Papademus (idêntica à
que, na Itália, foi chefiada por outro banqueiro, Mario Monti), que ninguém
elegeu, mas que sabia interpretar bem os interesses do grande capital
financeiro. Mesmo os artistas mais consagrados deixam cair as máscaras…
E o Financial
Times não se conteve e anunciou mesmo a ‘morte’ do ‘criminoso’: «Este
governo não pode sobreviver».
Em
28.1.2015, um dos vice-presidentes da UE (J. Kartainen) disse, sem o mínimo de
vergonha: «nós [a UE] não mudamos de política em função de eleições». Ficamos
sem saber para que servem as eleições. Se as proibissem, sempre se poupava
algum dinheirito…
A
mesma cultura democrática transparece na proclamação do ministro das finanças
alemão: «as eleições não mudam nada». Esta é a democracia do capital!
Na
primeira ronda de negociações, os jornais anunciaram que o Presidente da
Comissão Europeia e o Comissário Moscovici tinham chegado a um acordo com o
governo grego. Só que, na reunião do Eurogrupo que deveria ratificá-lo, o
respectivo presidente, verdadeiro moço de recados de Schäuble e Merkel, começou
a reunião afirmando que aquele acordo não servia para base das negociações,
apresentando uma proposta alternativa ‘em alemão’.
Em
16.2.2015, os ministros das finanças da zona euro, num gesto ternurento de
‘solidariedade europeia’, avisaram o novo governo grego de que não contasse com
o dinheiro da ‘metrópole’ se recusasse continuar as políticas de austeridade. Com esta declaração de guerra, começava o processo de ‘negociações’ em que
só o governo grego foi obrigado a ceder.
E o New York Times tirava de imediato a
conclusão: «os mercados financeiros pensam que a Grécia não tem qualquer outra
escolha que não seja abandonar o euro».
As
‘autoridades’ europeias não autorizaram o governo grego a utilizar cerca de
1.100 milhões de euros de ‘ajudas’ anteriores destinados a capitalizar a banca
e que não chegaram a ser gastos nesse objectivo beneficente. E o BCE anunciou
que, contrariando compromissos assumidos anteriormente, não devolveria à Grécia
cerca de 1.800 milhões de euros por conta dos lucros que obteve com operações
sobre a dívida grega.
Entretanto,
beneficiando do sacrossanto princípio da
livre circulação de capitais, os grandes empresários e os gregos muito
ricos fizeram sair do País, durante os anos da ‘crise’, mais de cem mil milhões
de euros. Quem o disse foi o Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schultz
(jornais de 10.6.2015). Talvez tenham procurado na Alemanha um ‘porto seguro’,
ajudando a Srª Merkel a recorrer menos à emissão de dívida pública e a poupar
milhares de milhões de euros (segundo cálculos do Bundesbank, a Alemanha poupou 120 mil milhões de euros entre 2007 e
2014).
Perante
este relato, não pode fugir-se à sensação de que estamos perante algo que se
parece com uma ‘associação criminosa’ em que cada membro do gang faz a parte que lhe cabe do plano
global traçado para aniquilar o inimigo a abater. Wolfgang Streeck tem razão:
«a integração europeia transformou-se numa catástrofe política e económica».
3. - Sucessivas reuniões decisivas para o futuro da Grécia entre
os credores e o Governo grego de
Alexis Tsipras iam tornando claro que não havia negociações nenhumas, mas apenas ‘combates’ em que os credores procuravam impor à Grécia mais
medidas de austeridade, batendo sempre a tecla da necessidade de cumprir as regras, ainda que estas tenham sido já
classificadas de «estúpidas» e «medievais» por um Presidente da Comissão
Europeia em exercício de funções.
Ora cumprir regras é tarefa de
burocratas, não de políticos. E os ‘responsáveis’ europeus deram, durante esses
longos dias, um triste espectáculo de mediocridade, de hipocrisia e de falta de
cultura democrática. Em condições de democracia, a política e os políticos
servem para construir soluções que sirvam os povos (é isto a democracia: governo para o povo), ainda que para
tanto tenham de meter as regras na gaveta.
Sabe-se que o Governo grego propôs medidas de combate à evasão e fraude
fiscais e à corrupção, o aumento dos impostos sobre o rendimento dos mais
ricos, sobre os lucros das grandes empresas e sobre os produtos de luxo.
É certo que rejeitou as propostas absurdas (provocatórias) dos credores de um saldo primário positivo
de 3% do PIB em 2015 e 4,5% em 2016, mas aceitou trabalhar para um saldo
positivo de 0,6% do PIB em 2015, 1,5% em 2016, 2,5% em 2017 e 3,5% nos cinco
anos seguintes. Em consequência, teve de aceitar também o aumento do IVA sobre
os medicamentos para 6,5% e do IVA sobre produtos alimentares básicos, água e
electricidade para 11% (os credores queriam impor taxas mais elevadas para
quase todos os bens e obrigar a acabar com os descontos fiscais para as ilhas
gregas).
O governo de Atenas aceitou igualmente um programa de privatizações que
renderia 3,2 mil milhões de euros em 2015/2016, mil milhões de euros em
2017-2019 e 10,8 mil milhões de euros no período posterior a 2020. Mas propôs
que se constituísse, com essas receitas, uma provisão para garantir os direitos
dos trabalhadores das empresas privatizadas e para investimento e que o
restante fosse canalizado para financiar a Segurança Social e um banco de
investimento que o Governo pretendia criar.
O Governo de Tsipras admitiu só repor o salário mínimo ao nível de 2010
depois de 2016 e propôs igualmente a adopção de medidas de combate ao ‘trabalho
negro’ e à fuga aos descontos para a Segurança Social, aceitando aumentar
progressivamente a idade de reforma e diminuir gradualmente as reformas
antecipadas aos 62 anos.
Perante estas cedências relativamente ao seu programa eleitoral (o
chamado Programa de Salónica), o
Governo do Siryza pretendia que os credores
aceitassem algumas medidas de alívio no que toca ao montante dos juros a pagar
em 2015/2016 e proporcionassem à Grécia um programa de financiamento de medidas
destinadas a promover o crescimento económico do país no período 2016-2021.
4. - Pois bem. Apesar disto, dessas
reuniões iam saindo declarações dos representantes dos
credores verdadeiramente insultuosas para os governantes gregos e
para o povo da Grécia. O governo da Grécia e o seu Primeiro-Ministro (que
apresentou um programa social-democrata moderado, cometendo talvez o ‘crime’ de
ressuscitar’ Keynes e as políticas keynesianas) eram rotulados de
radicais.
O ministro Schäuble classificou o Ministro das Finanças grego de
«estupidamente ingénuo».
A Directora-Geral do FMI disse um dia que era preciso continuar a
dialogar, mas que o diálogo só valia a pena «com adultos na sala». Incrível a
falta de educação desta senhora. Não é admissível que um funcionário
internacional chame garoto ao Primeiro-Ministro de um estado-membro da
Organização em que trabalha. O ordenado principesco que aufere justifica que se
espere dela, pelo menos, que seja bem educada, uma vez que a competência dela e
do FMI andam pelas ruas da amargura, depois dos erros crassos que cometeu e
reconheceu (mas não emendou), das previsões erráticas e erradas que vem fazendo
e das políticas que vem defendendo (umas vezes num sentido, outras vezes em
sentido contrário).
Do que transpirava dessas reuniões ia resultando também que continuava a
discutir-se a partir do pressuposto de que o chamado problema da dívida da Grécia é um problema dos gregos, que têm de
aceitar todas as ‘penas’ impostas pelos credores
(creio que só o Primeiro-Ministro grego insistia em continuar a falar de parceiros…).
De acordo com a informação de que disponho, creio poder afirmar que o
Governo grego foi para estas negociações com os credores (Fevereiro/2015) sem ter um plano B (um plano de saída do
euro, se tal fosse necessário), com base na ideia de que, na sua grande
maioria, os gregos queriam permanecer no euro e no pressuposto de que, no
quadro da UEM, era possível encontrar uma solução que servisse os interesses do
povo grego.
Posso compreender aquela ideia, porque, segundo as sondagens, as
reportagens e os comentários que tenho visto e lido, os gregos dão muita
importância ao facto de terem a mesma moeda de outros (grandes) países da
Europa. Há quem veja nesta ligação afectiva ao euro por parte do povo grego o
reflexo de um sentimento de que a entrada no euro significou, para este povo
tão martirizado (que foi berço da civilização europeia), o regresso definitivo
à Europa (à sua casa europeia),
depois da dureza da ocupação otomana e da quebra de identidade que ela terá
significado.
Mas, politicamente, não posso acompanhar o pressuposto de que é possível
permanecer no euro e pôr termo às políticas
de austeridade e ao retrocesso
civilizacional que elas representam.
E porque assim penso, não me surpreende o resultado negativo e muito
desgastante para o Governo do Siryza daquela ronda de negociações: o governo
caiu na armadilha que ele próprio ajudou a preparar. Deixando claro que não
tinha um plano alternativo, e proclamando que o seu objectivo prioritário era o
de manter a Grécia na zona euro, o Governo grego só podia esperar uma pesada
derrota no combate que ia travar com os ‘credores inimigos’, mais experientes e
mais fortes (até porque sabiam muito bem que o governo grego precisava de
financiamento e que o sistema bancário grego precisava de liquidez).
Sem surpresa, estas negociações de Fevereiro/2015 terminaram de forma
desastrosa para a Grécia e de forma desonrosa para os credores. A estratégia de tentar mudar as regras de funcionamento
da zona euro para, dentro dela, transformar a economia e a sociedade gregas,
ficou esvaziada.
5. - Começa a ficar claro, a
meu ver, que, como já vi escrito, «a Europa não tem um problema grego, tem um
problema alemão», traduzido no regresso da irracionalidade, da arrogância, da
embriaguez do poder por parte da elite dirigente da Alemanha, que se vangloria
de que «agora na Europa fala-se alemão» e que parece continuar a contar com um
povo fiel e obediente aos desígnios dos chefes. Um problema que reside no regresso
da Alemanha alemã (que reconstituiu o seu espaço
vital no centro e no leste da Europa e que vai ‘colonizando’ os povos do sul, todos a trabalhar para a
Alemanha) a uma Europa alemã
(capitulacionista e colaboracionista), ao contrário do que pedia Thomas Mann em
1953: uma Alemanha europeia numa Europa europeia, não Europa alemã comandada por uma Alemanha alemã.
Entretanto, com os fumos saídos dessas reuniões vinham ciscos
incandescentes e incendiários, acenando com a possibilidade de a Grécia ter de
sair da zona euro, uma arma utilizada a preceito porque os credores conheciam as sondagens indicativas de que a maioria dos
gregos é favorável à permanência da Grécia no euro, sendo que esta é também a
posição oficial do Governo do Siryza. Ameaçar com a ‘expulsão’ da Grécia do
clube do euro era, pois, uma maneira de semear junto dos gregos o medo de serem expulsos de casa (da
Europa), remetidos de novo, talvez, para as garras do império otomano.
Esta música ia permanecendo em antena por inspiração de Schäuble, que
contou, como sempre, com alguns ajudantes. O Ministro das Finanças da Áustria
proclamou aos quatro ventos (3.7.2015) que «o problema da saída da Grécia do
euro resolve-se facilmente». Mais brilhante foi Cavaco Silva, que veio explicar
ao mundo que a zona euro tem 19 membros, pelo que, se sair um, ainda ficam 18.
Lindo menino! Mostrou que sabe fazer uma conta de diminuir que se aprende na 1ª
classe. Mas mostrou também que não percebe nada do que é a UEM, nem percebe o
que significa o euro, nem percebe nada da Europa, e que é completamente
ignorante no domínio da História e da política. Uma vergonha.
Apesar destas ‘lições’, muita gente se foi apercebendo de que a saída da
Grécia da zona euro punha a ‘Europa’ a navegar por mares nunca dantes navegados. E o medo do Adamastor ressurgiu:
poderia ficar em causa o futuro do euro e o futuro da Europa.
Pouco antes de Cavaco Silva falar, o Presidente em exercício do Conselho
Europeu declarava: «não tenho dúvidas de que este é o momento mais crítico da
história da Europa e da zona euro».
Por essa altura, foi também a vez de a Srª Merkel vir a público,
assustada: «Se perdermos a capacidade de encontrar compromissos, então a Europa
está perdida»; «se o euro falha, a Europa falha».
Mas falta classe e clarividência a estes ‘chefezinhos’ da ‘Europa’: não
têm qualquer visão política do que seja a Europa e não fazem a mínima ideia do
que querem fazer com a Europa. A ‘Europa’ está à deriva.
6. - Em desespero de causa
(vendo que os socialistas europeus lhe negavam o apoio que talvez esperasse,
dada a moderação das suas propostas), o Primeiro-Ministro grego anunciou, em
finais de Junho/2015, a realização de um referendo, marcado para 5 de Julho de
2015, para que o povo se pronunciasse (SIM ou NÃO) sobre o programa de austeridade
que os credores lhe queriam impor.
Desta vez, não conseguiram fazer a Tsipras o que fizeram em 2012 a George
Papandreou: despedi-lo e pôr em seu lugar uma «junta civil» comandada por um
banqueiro. Mas os dirigentes dos países credores e da UE ficaram furiosos. E
não o esconderam.
Entretanto, em 30.6.2015, a Grécia falhou o pagamento de 1,6 mil milhões
de euros ao FMI. Poucos dias antes do referendo, o BCE (desrespeitando
claramente o seu mandato, que o obriga a garantir a estabilidade financeira na
zona do euro) suspendeu a linha de assistência de emergência destinada a
fornecer liquidez à banca (a chamada ELA – Emergency
Liquidity Assistance). O governo grego teve de fechar os bancos para evitar
a corrida aos depósitos e impor o controlo de capitais, fixando um limite de
sessenta euros diários para levantamentos em caixas multibanco.
Vários responsáveis da UE e algumas instituições intensificaram a sementeira do medo, acenando com o papão da saída do euro e com o inferno que se
seguiria. Mais um episódio da costumada ingerência da eurocracia e dos
governantes de vários estados-membros da UE nos assuntos internos de outros
estados. Mesmo os socialistas com responsabilidades de governo alinharam nesta
‘guerra’, à semelhança dos seus camaradas que, ao votarem no Bundestag os créditos da guerra, no dia
4 de Agosto de 1914, abriram caminho à Primeira Guerra Mundial.
Em 3.7.2015, o Presidente da
Comissão Europeia foi claro: «a vitória do NÃO deixará a Grécia dramaticamente
enfraquecida». E o Presidente do Parlamento Europeu, o social-democrata alemão
Martin Schultz, não poupou no ‘chumbo’ sobre o povo grego, avisando que o voto
NÃO significaria o
fim imediato do
financiamento europeu, pelo que a Grécia ficaria «sem dinheiro, os salários
não poderiam ser pagos, o sistema de saúde deixaria de funcionar, o
fornecimento de electricidade e o sistema de transportes públicos ficaria
paralisado».
Reagindo ao fogo inimigo, o Ministro das Finanças da Grécia deixou cair o
verniz diplomático e disse uma verdade: «o que estão a fazer à Grécia tem um
nome: terrorismo».
Contra a corrente, surgiam também vários apoios ao povo grego, pouco
divulgados, porque não encaixavam nos critérios jornalísticos da imprensa
livre. Um deles foi o do Prémio Nobel Joseph Stiglitz (29.6.2015), segundo o
qual o voto NÃO «deixaria pelo menos aberta a possibilidade de a Grécia agarrar
o seu destino com as suas próprias mãos».
O referendo realizou-se sem problemas (quem diria que um estado
ineficiente seria capaz de organizar um referendo com esta importância e com
esta envergadura em tão poucos dias?). Apesar dos bancos fechados, da falta de
dinheiro e da campanha de terror, as
políticas
de austeridade receberam um rotundo NÃO de 67% dos gregos (os que anularam
os votos porque queriam ir mais longe também recusaram estas políticas). Foi
comovente assistir à vitória da coragem sobre o medo, da resistência sobre o
colaboracionismo, da dignidade sobre o servilismo, dos homens sobre os
‘carneiros’, da cidadania sobre o terrorismo, da política sobre as ‘regras’, da
democracia sobre o «fascismo de mercado», da paz sobre a guerra, da verdade
sobre a manipulação dela pela ‘comunicação social dominante’.
7. - Conhecido o resultado do
referendo, o vice-chanceler alemão (Presidente do SPD) fez a declaração de guerra
(5.7.2015): «destruíram a última ponte sobre a qual um compromisso poderia ter
sido alcançado». Para bom entendedor, o recado estava dado: agora têm de
aceitar uma rendição incondicional,
caso contrário são ‘chutados’ para fora do euro.
O Presidente do Eurogrupo (social-democrata holandês) tocou a mesa
música: «este resultado é muito lamentável para o futuro da Grécia».
O BCE (ao qual cabe – recordo de novo – a responsabilidade de manter a
estabilidade do sistema financeiro no seio do Eurosistema) recusou um pedido do Banco Central da Grécia para
aumentar o montante da linha de emergência ELA, mantendo o limite fixado em 26
de Junho, mas exigindo garantias mais fortes para conceber o mesmo montante de
liquidez. É claro que foi necessário continuar com os bancos fechados, com
graves prejuízos para as famílias e para as empresas (a economia).
Os credores têm manejado muito
bem a arma do medo ameaçando com a ‘expulsão’ da Grécia da zona euro, sabendo
que a maioria dos gregos prefere continuar na zona euro. E creio que o povo
grego pode ter-se eixado enredar numa armadilha que ele próprio ajudou a
construir, ao pensar que é possível manter-se na Eurozona e libertar-se do
garrote das políticas de austeridade e das ofensas à sua dignidade que elas
implicam. O problema é que a austeridade é, em grande medida, filha do euro,
das estruturas da UEM, das malhas tecidas no Tratado de Maastricht. E, como
procurei mostrar atrás, o Tratado Orçamental (verdadeiro «golpe de estado
europeu», como alguém já lhe chamou) é um autêntico pacto de subdesenvolvimento, um pacto
colonial destinado a escravizar (Financial Times) os povos do sul. A UEM não significa liberdade, independência,
soberania, mas empobrecimento, submissão, colonização, ‘escravidão’. Por isso é
que, a meu ver, a pretensão do povo grego o coloca perante um problema tão
impossível de resolver como a quadratura
do círculo e o fragiliza que ‘guerra’ que os credores vêm travando contra ele.
Na minha maneira de ver, o governo grego e o partido que o apoia
cometeram o erro político de não terem compreendido isto mesmo. E fico sem
saber qual a razão que levou Alexis Tsipras a convocar o referendo. Convocou o
povo a pronunciar-se em referendo e fez campanha pelo NÃO. O povo grego,
corajosamente, deu-lhe o apoio que pediu. Perante esta lição de dignidade, não
consigo descortinar as motivações que levaram o Primeiro-Ministro grego a fazer
aprovar no Parlamento, logo a seguir, um programa
de austeridade ainda mais violento do que aquele que tinha sido rejeitado
em referendo, programa que teve a oposição de dois dos ministros do seu Governo
e de vários deputados do Siryza, mas que contou com os votos favoráveis dos
partidos que entregaram a Grécia à troika,
que submeteram o povo grego às políticas
de austeridade dos ‘programas de resgate’ (contra os quais o Siryza sempre
votou), e que votaram SIM no referendo.
É legítimo perguntar: para que foi
convocado o referendo? Acreditaria Alexis Tsipras que o SIM ia ganhar, ficando
desse modo legitimado para aceitar o
diktat dos credores? Se
acreditava na vitória do NÃO, fica difícil de entender que não tenha ao menos
respeitado a lição de dignidade do povo grego, deitando para o lixo, através de
uma votação no Parlamento, o voto do povo soberano no referendo de 5.7.2015.
Não era de esperar que este governo se juntasse aos credores para, também ele, ofender a dignidade do povo grego. A
verdade é que, antes da realização do referendo, Varoufakis declarou que, em caso
de vitória do SIM, se demitiria do cargo de Ministro das Finanças, enquanto
Tsipras garantia que, democraticamente, respeitaria a vontade do povo grego,
qualquer que ela fosse. E é estranho o que contou Varoufakis, segundo os
jornais: depois de conhecido o resultado do referendo, ficou muito surpreendido
por ter encontrado Tsipras melancólico no seu gabinete.
Com o voto do Parlamento na mala, o Primeiro-Ministro (que, horas depois
do referendo, perdeu o seu Ministro das Finanças, que se tinha tornado incómodo
para os credores e talvez também para
ele próprio) partiu para Bruxelas, pensando que iria jogar um jogo só para
cumprir calendário, com a vitória assegurada, talvez sonhando com uma qualquer austeridade de rosto humano. Enganou-se
redondamente, porque esqueceu que Roma
não paga a traidores, e os ‘romanos-credores’ sentiram-se traídos (a palavra é de Jean-Claude
Juncker) por Tsipras quando decidiu convocar o referendo e muito mais traídos
se sentiram quando viram o resultado do referendo e perceberam que o povo grego
não cedeu à chantagem nem ao medo, fazendo valer a sua dignidade, para além dos
cálculos políticos.
O Primeiro-ministro grego partiu para a ‘guerra’ confiante na vitória
(até porque as suas exigências eram mínimas e as cedências eram muitas e
importantes, em confronto com o Programa
de Salónica), mas o governo grego não se tinha preparado para a ‘guerra’,
porque não tinha estudado e estruturado um plano B para a hipótese (previsível,
dado o currículo das troikas) de
correrem mal as negociações com os credores.
Seguiram-se reuniões várias, com a intervenção de personalidades
diversas, de dia e de noite, numa verdadeira maratona, porque, afinal, os credores também tiveram medo de que a
Grécia saísse do euro (poderia abrir-se uma fenda no dique que poderiam não
conseguir tapar…) e também porque, do outro lado do Atlântico, Obama lhes fez
ver a importância do que estava em causa, para além das contas de merceeiro, no
plano da economia mundial e no plano geoestratégico global do imperialismo.
No meio disto tudo, custa a perceber que as questões em cima da mesa, tão
importantes (
decisivas é a palavra
mágica…) à escala da Grécia, à escala da UE e da Europa, à escala da NATO e à
escala mundial, tenham sido analisadas e decididas em reuniões do
Eurogrupo, ao nível de ‘contabilistas’,
confiadas a uma estrutura que não existe nos Tratados como instituição
europeia, um órgão informal, mas que tem, afinal, sem qualquer apoio legal
expresso, um papel decisivo na análise e na resolução do falsamente chamado
problema grego, que é, sem sombra de
dúvida, o mais grave problema político que a ‘Europa’ já enfrentou.
Todos sabemos que a CECA foi criada por razões políticas. Que a CEE foi
criada por razões políticas. Que foram razões políticas que justificaram a
entrada da Grécia na CEE (1981); que levaram à entrada de Portugal e da Espanha
na CEE, estimulada e apoiada ‘carinhosamente’ pela ‘Europa’ (1986); que ditaram
o alargamento aos países da Europa central e de leste (nomeadamente aos que
tinham integrado a comunidade socialista europeia e que, historicamente, fazem
parte do espaço vital da Alemanha);
que conduziram à criação da UEM e do euro. Todos sabemos que foram razões
políticas que permitiram a entrada no clube do euro de países como Portugal,
Grécia, os países bálticos e outros.
O que estão a fazer as instituições
políticas da UE, o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e até o Conselho
de Chefes de Estado e de Governo? Quem decide sobre os problemas políticos mais
importantes da ‘Europa’ são os ministros das finanças? Os problemas em
discussão são um problema de contas? Que ‘Europa’ é esta? É uma vergonha para
os europeus. Oxalá não venha a ser o coveiro da democracia e da paz na Europa,
neste ano em que passam cem anos (bem medidos) sobre o início da 1ª Guerra
Mundial (que começou nos Balcãs, lembram-se?) e setenta anos sobre o fim da 2ª
Guerra Mundial.
Ora o Governo do Siryza manteve a prioridade concedida ao objectivo de
permanecer no euro e reafirmou isso mesmo publicamente. E é claro que não
tratou de preparar o complexo dossiê da saída do euro e não se preocupou em
fazer pedagogia política junto da opinião pública grega (à qual o Siryza tinha
dito, durante a campanha eleitoral de que saiu vitorioso, não estar disponível
para suportar «nenhum sacrifício pelo euro») com vista a ganhar o seu apoio
para as negociações que iriam decorrer no mês de Junho/2015. Partiu para elas
com a mesma ingenuidade com que tinha encarado a ronda de Fevereiro. E, sem
poder utilizar a possibilidade de saída do euro como arma negocial (por não ter
estudado nem preparado esta alternativa), o resultado foi ainda mais desastroso
do que em Fevereiro.
Estas considerações não apagam a minha ideia de que a responsabilidade
política dos credores da Grécia no castigo e na humilhação que infligiram ao
povo grego é muito maior do que a de Tsipras e do seu Governo. Porque eles
sabiam muito bem que a Grécia não estava preparada para uma alternativa à
austeridade punitiva e empobrecedora e puxaram a corda até que, já quase sem
poder respirar, Tsipras aceitou o ultimato
de rendição incondicional.
13. - Não quero ser pessimista, mas a
verdade é que a persistência nas políticas da UE (disfarçada de troika ou actuando como tal ou como BCE)
que estão a arruinar a economia dos ‘países do sul’ e a minar a sua soberania,
bem como a insolência com que os governantes dos ‘países do norte’ vêm enxovalhando
a dignidade dos ‘países do sul’, têm todas as características de uma verdadeira
guerra.
Pode estar em perigo a paz na
Europa.
Jean-Claude Juncker
tem razão, por uma vez, quando diz que
«está completamente enganado quem acredita que a questão da guerra e da paz na
Europa não pode voltar a ocorrer. Os demónios não desapareceram, estão apenas a
dormir, como mostraram as guerras na Bósnia e no Kosovo».