Este escrito foi publicado no "Expresso" em
2009
Costa Martins arrasa memórias de Vasco
Lourenço
O ex-ministro do
Trabalho de Vasco Gonçalves classifica o livro de "ofensa ao 25 de
Abril".
Num extenso comentário enviado ao
Expresso, o coronel Costa Martins disseca o livro "Do Interior da Revolução",
uma longa entrevista de Vasco Lourenço a Maria Manuela Cruzeiro, do Centro de
Documentação 25 de Abril e editado pela Âncora. Martins acusa Lourenço: "Em
alguns casos, inventa factos; noutros - para fugir a responsabilidades, ou por
ignorância - diz desconhecê-los; e em outros, manipula-os e subverte-os,
chegando, por vezes, a fazê-lo de forma ridícula e até incorrendo em flagrantes
contradições".
Piloto-aviador na reforma, Costa Martins
também esteve envolvido no golpe de 25 de Abril, após o que foi ministro do
Trabalho de todos os governos de Vasco Gonçalves. Membro dos conselhos de Estado
e da Revolução, participou em muitos dos episódios referidos no livro por Vasco
Lourenço, mas pertencendo a uma corrente político-militar diferente: enquanto
este foi um dos operacionais do "grupo dos nove", Martins fazia parte da
corrente "gonçalvista", alinhada com o PCP. Se Lourenço foi um dos vencedores do
25 de Novembro, Martins passou à clandestinidade e chegou a viver em
Angola.
"Vasco Lourenço tem o direito de não
entender que o mundo ultrapassa os limites do seu umbigo", escreve Costa
Martins. "O que não tem é o direito de ofender tudo e todos para dar largas ao
seu exacerbado egocentrismo e à sua desmedida megalomania, parecendo usá-los
como capa para mascarar as suas frustrações. Nem tem o direito de denegrir o
bom-nome e a honra dos seus camaradas militares, com invencionices, deturpações
e manipulações de factos, mentiras e calúnias, espezinhando tudo e todos, muitas
vezes dissertando sobre o que não sabe, ou não conhece, e atraiçoando a própria
História do país".
Segue-se, na íntegra, o texto do coronel
Costa Martins (os subtítulos são da responsabilidade do Expresso).
Uma ofensa ao 25 de
abril
* Costa Martins
No Expresso de 25-04-2009, foi publicado
um artigo de José Pedro Castanheira alusivo ao livro de Vasco Lourenço,
intitulado "Do Interior da Revolução" em que sou visado. À partida, senti
relutância em ler o livro pelo facto de Vasco Lourenço não me merecer confiança
e por estar farto das suas mentiras e calúnias. Contudo, algumas pessoas
recomendaram-me que o lesse, e acabei por fazê-lo. E valeu a pena.
A entrevistadora, no contexto das
perguntas e com os seus profundos conhecimentos, refere aspectos importantes da
História recente de Portugal.
Vasco Lourenço, dissertando sobre tudo e
sobre todos, faz declarações por vezes inéditas.
Em alguns casos inventa factos; noutros -
para fugir a responsabilidades, ou por ignorância - diz desconhecê-los; e em
outros, manipula-os e subverte-os, chegando, por vezes, a fazê-lo de forma
ridícula e até incorrendo em flagrantes contradições.
Vasco Lourenço chega a declarar que Melo
Antunes era o único que tinha um plano estratégico para o país, mas que "foi um
benefício" a sua saída da Comissão Coordenadora, quando ele entrou!
E afirma a seguir que: "o mesmo se
passando com a substituição de Costa Martins por Canto e Castro". Não se tratou
de substituição na Comissão Coordenadora, mas sim da usurpação do meu lugar no
Conselho da Revolução, "cozinhada" de forma porca e suja, que então denunciei e
o Expresso publicou.
Não somos burros dispostos a comer toda a
palha
Vasco Lourenço mostra a sua verdadeira
personalidade, sobre a qual não posso pronunciar-me em termos clínicos porque
não sou médico da especialidade; mas posso e devo fazê-lo em termos de
apreciação comum, ainda que, por agora, de forma não muito aprofundada para não
me alongar demasiado - apesar de haver "pano para mangas"...
Vasco Lourenço tem o direito de não
entender que o mundo ultrapassa os limites do seu umbigo.
O que não tem é o direito de ofender tudo
e todos para dar largas ao seu exacerbado egocentrismo e à sua desmedida
megalomania, parecendo usá-los como capa para mascarar as suas
frustrações.
Nem tem o direito de denegrir o bom-nome e
a honra dos seus camaradas militares, com invencionices, deturpações e
manipulações de factos, mentiras e calunias, espezinhando tudo e todos, muitas
vezes dissertando sobre o que não sabe, ou não conhece, e atraiçoando a própria
História do País.
Na voracidade dos enganos vai ao ponto de
nem sequer poupar a criança, seu neto, na dedicatória que lhe fez! Toma-nos a
todos como se fossemos uns burros dispostos a comer toda a palha que nos quer
dar.
Certamente usando o dom da ubiquidade,
esteve em todas as reuniões do MFA. Dirigiu e comandou tudo e todos, admoestou
generais e pô-los em sentido. Ameaçou atirar pela janela quem se lhe opusesse, e
reclamou camisa-de-forças. Vetou decisões que não lhe interessavam - ainda que,
por vezes, contrariando a vontade de todos os outros. Impôs o que entendeu.
Opôs-se a que existissem Generais na Junta de Salvação. Entendeu que seria ele
"o comandante do 25 de Abril". Achou que os órgãos de comunicação social "tinham
de estar disciplinados". E propôs-se vetar o resultado das eleições democráticas
se entendesse que os eleitos eram "reaccionários"!
Com um tal democrata, para quê
ditadores?
No 16 de Março
À medida que avançava na leitura do livro
ia-se-me aguçando o interesse por tropeçar no capítulo em que Vasco Lourenço
tivesse ordenado a Deus que se afastasse, para que fosse ele a comandar o mundo.
Mas não o conseguiu.
E tudo por causa dos seus camaradas
militares, porque uns são "cobardes", outros "tontos", outros "pobres diabos",
outros "actores de palco", outros, "um bluff". Enfim, "uma cambada de
incompetentes".
E os spinolistas? Essa "cambada de inúteis
e imbecis" que "Spínola tinha à sua volta" e que só se apercebeu disso quando
ele lhe chamou a atenção durante um reparo que lhe fez.
Foi por tudo isso que, logo no dia 16 de
Março - já nos Açores - "sem saber exactamente o que se estava a passar" chamou
"montes de nomes à malta do Movimento. Estúpidos. Deitaram tudo a perder!
"
Não fora a contenção imposta pelo seu
profundo sentimento de camaradagem - que sempre alardeou - e teria muito mais
epítetos para qualificar toda essa cambada de incompetentes, de
inúteis e imbecis, estúpidos, tontos, cobardes, pobres diabos, actores de
palco, bluffs, que, em vez de o ajudarem só o atrapalharam!
E foi por causa deles que não conseguiu
afastar Deus e tomar o comando do mundo! Mas, também se o tivesse conseguido,
não tinha tido a possibilidade de, no 25 de Abril, nos Açores, apelar ao
Aspirante Ramos para que rezasse!
Isto, à cautela, não fosse o diabo
tecê-las, porque apesar de ter deixado tudo preparado e todas as ordens dadas a
todos antes de embarcar para os Açores, o Otelo podia não as ter entendido e
resolver usurpar-lhe o palco - que era seu, exclusivamente seu!
No 25 de Abril
Já os fascistas, também estúpidos e
incompetentes, nem discorreram que, se em vez de o terem mandado para os Açores
em princípios de Março o tivessem feito alguns dias antes, não tinha havido 25
de Abril!
E a coisa que não lhes perdoa "foi o
impedirem que estivesse aqui no 25 de Abril" - embora confesse que sempre esteve
disposto a seguir!
A fls. 187 do livro, a propósito da sua
ida para os Açores, faz mesmo a seguinte declaração: "Está bem. Eu embarco.
Já fizemos o que tínhamos a fazer, aliás, eu sempre estive disposto a
seguir"!
Se em vez de sempre ter estado disposto a
seguir, tivesse tido a determinação de ficar e a coragem de enfrentar o regime
recusando-se a embarcar, teria cá estado no 25 de Abril. Mas preferiu o pseudo
rapto, para show off e como forma de fugir às responsabilidades,
"empurrando-as" para cima de outros, em vez de as assumir.
Até porque, pouco tempo antes, um Capitão
do Estado-Maior da Força Aérea, a quem fora imposta uma deportação, recusou-se a
embarcar e, mesmo sem ter atirado indivíduos pelas janelas nem reclamado
camisa-de-forças, ficou cá e participou activamente no 25 de Abril! Contudo,
melhor fora que esse "tonto" não tivesse cá ficado.
Então não é que ele, "incapaz de perceber
o seu Princípio de Peter", no 25 de Abril ia deitando tudo a perder com a
emissão de um NOTAM determinando o encerramento do espaço aéreo português, o que
fez com que Vasco Lourenço se visse impedido de regressar de imediato a Lisboa
para estar "aqui no Continente, no centro dos acontecimentos" - no palco! Crime
de "lesa-majestade" que nunca mais lhe perdoou.
Contudo, se tivesse recusado seguir para
os Açores, Vasco Lourenço, não teria sabido que, "afinal [tinha] uma importância
doida" - apesar de não ter sido nessa altura que pediu uma camisa-de-forças - só
se tendo apercebido disso quando, no seu embarque, se deparou no Aeroporto com
os "pides, com aqueles carimbos todos da PIDE, gabardina, óculos escuros, ar
sinistro"..."pides por todo o lado"..."tantos!"
Mas não foi só em relação à ida para os
Açores que, em matéria de fuga às responsabilidades em momentos sérios e
difíceis, Vasco Lourenço esqueceu a sua tão exibida frontalidade e procurou
fugir às responsabilidades.
No PREC
No Verão de 1975, a dada altura houve
reuniões do CR, no Alfeite, em dias sucessivos. Numa dessas reuniões, para me
atacar, fez acusações graves relativamente a dois processos que corriam no
Ministério do Trabalho.
Não podendo exibir elementos, por não os
ter naquele momento, limitei-me a manifestar profunda estranheza.
No dia seguinte levei os respectivos
dossiers à reunião e provei ser mentira tudo quanto Vasco Lourenço propalara na
véspera.
Por não estar disposto a tolerar calunias,
dirigi-me ao Primeiro-Ministro e ao Presidente da República, que participavam da
reunião, e apresentei a minha demissão - que o Expresso noticiou. E sugeri a
nomeação de Vasco Lourenço para me substituir como Ministro do Trabalho. Porque
o cargo não era "pêra doce", encolheu-se e esquivou-se a aceitar tais
responsabilidades.
Na sequência de insistentes solicitações
do PR e do PM para que eu permanecesse em funções, acabei por aceitar, mas
deixei bem claro que não admitiria críticas levianas e assentes em falsidades,
para mais vindas de quem mostrava incapacidade para desempenhar as funções e
assumir as inerentes responsabilidades.
Também, mais tarde, no dia 25 de Novembro,
quando o confrontei com as vergonhosas calúnias que propalara na entrevista
publicada no República em 20-11-75, relativas à Cabala do "Dia do Salário, mais
uma vez mentindo procurou fugir às suas responsabilidades, declarando que não
tinha dito "nada daquilo", que fora tudo invenções dos jornalistas e que iria
fazer o desmentido no dia seguinte. Nunca cumpriu, nem nunca se
retratou!
No 25 de Novembro
Com todo o seu heroísmo, no 25 de
Novembro, em vez de ter assumido as suas responsabilidades, indo para o Comando
da Região Militar de Lisboa, da qual era o comandante, "[deu] instruções a
Ramalho Eanes para ir para a Amadora", e resolveu ficar em Belém" debaixo das
asas do PR - não fosse, desta vez, o diabo tecê-las, para mais com a agravante
de não ter à mão o Aspirante Ramos para rezar.
Mas há cerca de um ano teve o descaramento
de declarar que no dia 25 de Novembro nunca me viu em Belém, apesar de se ter
encontrado comigo nas duas vezes em que lá fui reunir-me com o PR, precisamente
a propósito do 25 de Novembro! No livro faz a seguinte surpreendente declaração:
"Eu ainda hoje não percebi qual foi a actuação do Costa Martins". Assim sendo,
tem falado à toa, de forma irresponsável e inconsciente, quando sobre ela se tem
pronunciado; para mais, fazendo-o geralmente à base de mentiras e
calúnias!
Aliás, para que Vasco Lourenço pudesse
"perceber qual foi a minha actuação" teria de saber primeiro, o que
verdadeiramente, esteve por trás do 25 de Novembro, por trás da sua azáfama, do
"levar e trazer", do "diz que disse" e das tarefas sujas a que se prestou,
mentindo e caluniando camaradas que, de boa fé, o consideravam amigo.
É óbvio que eu - tal como a esmagadora
maioria da população - não estava de acordo com os crescentes desmandos com que,
no dia a dia, éramos confrontados, nem com o desnorte existente no País. Mas
sabia que o que estava em causa não era o apregoado. E sempre estive contra a
destruição dos Valores e Princípios Éticos, imprescindíveis ao relacionamento
dos cidadãos na "prometida sociedade de rosto humano."
O exibicionismo da
megalomania
Vasco Lourenço, na ânsia da sua desmedida
ambição, parece ter corrido atrás de miragens acenadas por "aladinos" - qual
coelho correndo atrás das cenouras - mas que, a final, em matéria de
concretização se confinaram a duas efémeras estrelas, rapidamente apagadas
quando os seus "brilhantes serviços" deixaram de "ter
aproveitamento".
E de pouco lhe serviu ter ido sentar-se na
cadeira do Primeiro-Ministro, em São Bento, num dia em que o Governo reuniu em
Belém.
Parece serem essas as causas das suas
incontidas frustrações bem espelhadas no livro, ainda que aparentemente
camufladas pelo exibicionismo da sua megalomania e pela linguagem deselegante,
grosseira e por vezes ofensiva, com que se refere a camaradas e se dirige
publicamente a entidades respeitáveis, inclusivamente ao próprio Presidente da
República, pensando que, assim, parece importante!
*Costa
MartinsCoronel piloto aviador, na reforma; ex-ministro do Trabalho dos II, III, IV e V Governos Provisórios; ex-membro da Comissão Coordenadora do MFA, do Conselho de Estado, do Conselho da Revolução e do Conselho dos Vinte
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