DURAN CLEMENTE
Vasco Gonçalves. O mais insigne capitão
de Abril e timoneiro da revolução
Falar de Vasco Gonçalves e das
razões deste depoimento, em sua memória e na dos 40 anos de tomada de posse
como o timoneiro da Revolução, é sermos fiéis à justiça e ao reconhecimento. É
falar de Vasco Gonçalves, da sua acção como militar e político revolucionário,
seja como - coronel - um dos mais experiente e cultos dos oficiais
conspiradores, entre capitães do MFA, a partir de 5 de Dezembro de 1973, seja
como primeiro chefe da 5ª Divisão do EMGFA, seja como Primeiro-ministro dos
2º,3º,4º e 5º Governos Provisórios, seja como um dos mais puros “capitães de
Abril” caluniado e vilipendiado. É reflectir também sobre uma vertente do MFA,
dos militares que sempre com ele estiveram (com subida honra apelidados de
gonçalvistas) e sobre as iniciativas e organizações criadas, sob o seu impulso,
e que mais não fizeram que, ao dar-lhe apoio, apoiarem o Povo, apoiarem a
Revolução.
Comecemos por citar uma expressão
de Vasco Gonçalves: “…o MFA não era um movimento revolucionário: tinha
revolucionários nas suas fileiras mas isso não fazia dele um movimento com
essas características…”.
Sabemos que o MFA procurava
sobretudo realizar um programa que tinha como base o derrube do regime
ditatorial e fascista, acabar com a guerra colonial e instaurar um regime
democrático. Mas dentro do MFA havia militares com várias tendências e
diferentes graus de politização. Não era um corpo homogéneo e muito menos de
homogeneidade revolucionária. “Os aspectos mais progressistas da actuação do
MFA são motivados pelo levantamento popular num sentido revolucionário” são
palavras do próprio Vasco. E, diremos nós com ele, pelas lições dadas por todos
os antifascistas, na sua estóica, luta contra a ditadura e colonialismo. Foi o
pulsar do Povo (dos Povos) e a força da sua razão e o exemplo dado na luta pela
liberdade e contra a opressão que nos conduziram à acção de revolta.
É, ainda e sempre, falar da
intervenção de Vasco, também na colaboração do texto final, do próprio Programa
do MFA, como na sua interpretação prática. Vasco Gonçalves sabe que havia
militares que faziam do Programa do MFA uma leitura estática, respeitando
apenas o texto. Mas Vasco também sabe que outros militares do MFA, a que ele
pertencia e era a sua referência, entendiam o Programa como um projecto
suficientemente aberto à evolução da própria realidade. Para ele, e para o MFA
revolucionário, novas dinâmicas surgiram, que parecendo não estar previstas à
partida, impuseram uma interpretação “não apenas literal” do Programa do MFA.
Porque nele estão expressas as acções programáticas essenciais e que constituem
emanação profunda das gentes sacrificadas deste país, dum Portugal oprimido e
isolado durante 48 anos, exigindo: “uma nova política económica”,”uma
estratégia anti-monopolista”, e “uma outra política social” tudo “na
defesa dos interesses das classes trabalhadoras e no aumento progressivo mas
acelerado da qualidade da vida de todos os portugueses”.
O programa do MFA é emanação da
vontade dum povo e dum povo inteiro, daquém e de além-mar, onde, numa “Guerra
da Libertação” (dita do Ultramar) os capitães de Abril, durante longos treze
anos, beberam ensinamentos: com os combatentes, dum lado e doutro, com as
contradições do fascismo e do colonialismo mas também com as lições dos ventos
da época e de quantos, resistentes e militantes, durante meio século lutaram e
morreram, pelo fim da noite escura duma das mais longas ditaduras. A acção do
MFA, (com muito poucos oficiais superiores, tal como Vasco Gonçalves já
antifascista conspirador, ainda como capitão, no Golpe da Sé em Março de 1959)
sendo o resultado duma experiência de organização e unidade, de jovens capitães
que emerge, se consolida e se organiza, é com as armas nas mãos do povo-soldado
que faz o 25 de Abril e no seu desenvolvimento cresce a aliança Povo-MFA. A
partir dessa alvorada luminosa, do “Renascer da Esperança”, Vasco Gonçalves, na
missão que lhe é incumbida, é quem melhor interioriza o Programa do MFA, como
bússola que traça um rumo e lhe dá mais força para a liderança das “Conquistas
da Revolução”, em nome do seu povo, e que a Constituição de 1976, contra ventos
e marés, acabará por consagrar.
A partir do momento que o MFA dá ao
seu programa o único significado que ele podia ter, e emana uma ordem de
missão, para acabar de vez com os resquícios fascistas e construir uma
democracia do Povo e para o Povo, vê-se a braços, e de que maneira, com os
inimigos desta dinâmica. E o grave é que isso aconteça dentro do próprio MFA particularmente
após a queda de Spínola e do falhanço das forças conservadoras, militares e
civis, que o acolitaram.
Os “Capitães de Abril” e a seus
representantes - a Comissão Coordenadora do MFA - foram ainda firmes e coesos,
quer no “golpe Palma Carlos”, em Julho, quer mais tarde no “golpe da maioria
silenciosa”, em 28 de Setembro. Resistindo aos ímpetos dum projecto pessoal e
de ganância de Poder, o MFA não só afasta e recusa os propósitos do General
Spínola, como escolhe Vasco Gonçalves para a responsabilidade de chefiar o
segundo e o terceiro Governos Provisórios, respectivamente a 18 de Julho e a 1
de Outubro de 1974. Em ambas as tomadas de posse Vasco Gonçalves reitera a
decisão inabalável de cumprir escrupulosamente o Programa do Movimento e em entrevista,
horas depois desse acto, é absolutamente claro ao afirmar: “A unidade entre
o Povo e o MFA constitui condição fundamental do nosso progresso”.
Sabíamos de que Povo o General
falava mas é pertinente questionarmo-nos: -e que se passava no seio do MFA?
Interrogamo-nos em várias questões. Do MFA que não tinha falhado nas medidas e
conquistas político-sociais, impulsionadas pelos governos de Vasco? Do MFA que
fora imperturbável no processo, complexo e difícil, do início da
descolonização, mesmo, e ainda, com Spínola? Não estavam com o pensamento de
Vasco, alguns membros do MFA, que nunca entenderam que a descolonização não era
uma dádiva mas sim uma conquista da Liberdade. Conquista marcada pela coragem
dos Movimentos de Libertação e dos militares conscientes que queriam a Paz, que
se recusaram a mais guerra e negaram os ímpetos do imperialismo. De todos que
queríamos um equilíbrio mais justo do mundo e a independência das gentes
colonizadas como uma das mais históricas conquistas da Revolução dos povos.
O MFA, apesar das acções do órgão
politico militar criado pelo MFA - a 5ª Divisão do EMGFA - de quem Vasco
Gonçalves foi o primeiro chefe, das suas acções da Dinamização Cultural, das
suas mais diversas e criativas formas de esclarecimento público, começava
agora, para os revolucionários, a dar os primeiros sinais de vulnerabilidade,
tal como dizia Vasco: “…da incapacidade de o MFA revolucionário estender a
sua influência a todas as Forças Armadas, do demissionismo, quantas vezes
deliberado, de oficiais não afectos ao MFA, das dúvidas e receios de militares
menos esclarecidos politicamente, cuja formação conservadora e tradicionalista
os perturbava e tornava incompreensível o processo revolucionário e tendo neste
aspecto um papel muito negativo as actividades provocatórias esquerdistas.”
E não esquecendo, num xadrez mais alargado, a interacção/influência daquilo que
o fascismo deixara implantado nas nossas terras, do caciquismo e do clero
conservador e preconceituoso, do índice de analfabetismo que rondava os 33 % da
população!
Vasco Gonçalves e o MFA, com o
imperativo de salvar a economia, para salvar a revolução, enfrentam os
disfarçados ataques do “capital” (quer nacional quer imperialista) que,
sentindo-se a perder terreno, foram exímios na concretização dos mais ousados
esquemas de destabilização e de quebra da unidade revolucionária.
Na evolução dos acontecimentos o
núcleo duro do MFA (a sua Coordenadora comandada por Melo Antunes) deixa-se
descompensar e perde em firmeza e coerência, aquilo que lhe oferecem em
debilidade e inconsequência, na aspiração duma “velha aparente estabilidade de
ordem externa” que jamais disfarçará uma “profunda desordem interna e mal-estar
social”, absolutamente em contraste com um novo Portugal que se queria como
sociedade mais justa e equilibrada. Esta trágica dinâmica, anti-revolução e
anti-Vasco Gonçalves, infelizmente atravessou quatro décadas e chegou aos dias
de hoje.
Bem se esforçou Vasco Gonçalves,
e se esforçaram os revolucionários militares e civis, para porem fim aos
ataques á genuína “essência dos capitães de Abril” e ao cumprimento do
seu programa. Vasco sabia bem e afirmava-o muitas vezes “não perder nos
gabinetes e/ou pela mão dos militares conservadores o que já se conquistara no
terreno”. Reforça-se, assim, a necessidade e a vontade da
institucionalização do MFA. Nascem as Assembleias do MFA (AMFA) suscitadas pela
positiva experiência da sua criação no processo de descolonização da Guiné-
-Bissau. Abre-se ainda mais o caminho para referida institucionalização.
Iniciam-se as conversações com os
partidos para lhes comunicar o desejo da institucionalização e criar um “modus
vivendi” com eles que fosse fiel às conquistas da revolução já alcançadas. O
Pacto MFA-Partidos.
Vasco, a Dinamização Cultural e
acção da Quinta Divisão empenham-se, ainda mais, em garantir a continuidade e
desenvolvimento do processo revolucionário. Através do Boletim quinzenal do
MFA, dirigido pela “Coordenadora” do MFA e corpo redactorial da 5ª Divisão,
Vasco apela, como primeiro-ministro, à edição dum artigo de fundo, sob o título
“O MFA: do Político ao Económico” em Novembro de 74. Sugere um apelo para a
urgência de se tomarem medidas de carácter económico, lançar as bases para um
efectivo controlo da actividade básica pelo Estado e da luta contra a sabotagem
ainda vigente, criando condições que permitam melhorias da qualidade de vida
dos portugueses e promovam o desmantelamento da base económica do fascismo.
Contrariar a indiferença dos latifundiários às solicitações, do Governo e do
MFA, para a realização de projectos de aproveitamento económico das terras.
Foi então criado, pelo Conselho
de Ministros, um grupo de trabalho, constituído por certas personalidades, da
área económica e social. O grupo, coordenado por Melo Antunes, demorou
excessivo tempo a produzir o documento, em reuniões de “ilustres” em Sesimbra.
Quando apresentado, apesar das reservas de Vasco Gonçalves e do MFA que lhe era
mais próximo, ele acabou por ser aprovado, quer no Conselho dos Vinte, quer
numa AMFA a 21 de Fevereiro de 1975.
Com a tentativa golpista do 11 de
Março, despoletada novamente por Spínola e as suas hostes desesperadas, para
fazer gorar a institucionalização do MFA, estes tudo precipitam. Opera-se a
institucionalização do MFA, criando-se o Conselho da Revolução (CR) dois dias
depois. No patamar económico-social são apontadas a necessidade de se tomarem
as medidas mais revolucionárias: Planeamento, Nacionalizações e Reforma
Agrária. Estas foram das primeiras medidas do neófito CR. Foram dados poderes a
Vasco Gonçalves para formar a 4ª Governo Provisório que inicia suas funções a
partir de 27 de Março. A reestruturação da banca nacionalizada, o controlo das
empresas privadas pelo Estado, a criação do sistema de Planeamento, o
prosseguimento da nacionalização dos sectores básicos e a reforma agrária, são
as principais bases da agenda e programa deste governo.
Avança-se para eleições da
“constituinte” e para o pacto: MFA- -Partidos. Já referimos anteriormente o
alcance deste Pacto “não perder prematuramente as conquistas alcançadas e
tentar incluí-las na Constituição de 1976”. Embora houvesse consenso no MFA
veio-se a confirmar que quem punha reservas às medidas revolucionárias mais tarde
se constituiria no chamado “grupo dos nove”. Mas aos partidos de direita e
incluindo o PS não interessaria divulgar tais reservas antes das eleições.
Houve aqui um tacticismo eleitoralista. Percebe-se bem porquê. Após as
eleições, com a vitória do Partido Socialista (PS) logo seguido pelo PPD, estes
partidos procuraram atacar desabridamente Vasco Gonçalves e acabar com o
processo revolucionário, agravando as condições que eram naturais entre os dois
processos. Tudo serviu de pretexto. O processo revolucionário foi travado mas
não completamente derrotado: as conquistas alcançadas durante o período mais
criativo da revolução foram, efectivamente, todas consagradas na Constituição
de 1976.
A partir das eleições, de 25 de
Abril de 1975, o PS inicia acções e um comportamento nada conducente com o seu
ideário socialista e promessas eleitorais, fomenta divisões entre sindicatos e
trabalhadores e salienta-se como um dos principais aliados das forças contra-revolucionárias.
O capital e os inimigos da revolução, (sobretudo os que perderam privilégios)
montam centrais de intriga, de intoxicação e de inquietação junto das
populações. Faz-se crer que Vasco Gonçalves e o Partido Comunista (PCP) “são
uma e a mesma coisa” e que pretendem controlar tudo. O anticomunismo primário
sai à rua. Alarmam-se pessoas, sobretudo as menos esclarecidas com fantasmas e
preconceitos.
Assim, PS e PCP, cavam entre si
profundas cisões e consequentemente se repercutem no movimento popular e no
seio do MFA. Vasco Gonçalves chega a ter reuniões com Mário Soares e Álvaro
Cunhal, mas sem sucesso. De modo a superar as contradições partidárias, sem
nunca pôr em causa os Partidos mas, num momento delicado da vida nacional,
procurando uma plataforma de unidade estratégica entre si, Vasco Gonçalves e o
MFA, para além do diálogo que incentivam entre eles, procuram também avançar
para o aprofundamento duma política de estímulo à participação popular, através
das suas organizações e ao estreitamento das relações entre o MFA e estas
estruturas, procurando institucionalizar a Aliança POVO-MFA.
Na própria Assembleia
Constituinte os deputados do PS e dos partidos mais à direita atacam o Governo.
Vasco Gonçalves e a corrente dos militares do MFA, mais à esquerda, tentam
“superar as contradições partidárias” com a aprovação de documentos como o PAP
– Plano de Acção Política e do Documento Guia da Aliança Povo-MFA. Embora este
último, não reunisse grande consenso. Mas é sobretudo este Documento-Guia, com
forte influência dos sectores radicais do MFA, que leva a saída dos ministros
do PS e do PPD do 4º Governo e à criação duma gravosa situação que só se
regulariza em 8 de Agosto com o inicio dum novo Governo, com carácter efémero -
o 5º Governo Provisório - cuja tomada de posse se realiza um dia depois da
publicação do designado “Documento dos Nove” (que põe em causa Vasco Gonçalves
e o MFA revolucionário) e também cinco dias antes do dito “documento de
Oficiais do COPCON” (que procurando contrapor-se àquele documento, abre a porta
a futuras posições de radicalismo contra Vasco e os militares da sua linha).
Porque os nove oficiais (4) do
documento referido são todos do CR instala-se definitivamente uma cisão neste
órgão. Na tentativa de a superar é ainda criado, nesta ocasião, um “pequeno
directório” constituído por Gosta Gomes, Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de
Carvalho. Mas estava aberta a contestação a Vasco Gonçalves já com alguns
anteriores incidentes, não só, por parte dos oficiais ditos moderados, como por
parte de ministros do PS a quando do chamado caso (jornal) “República”.
O processo precipita-se no
designado “Verão Quente” de 1975, com peripécias e distúrbios graves e
diversos. A norte do país o então grupo contra-revolucionário (com civis e militares
do fascismo) - MDLP – intenta acções terroristas destruindo sedes de partidos
de esquerda e praticando vandalismos. Em finais de Agosto, as instalações da 5ª
Divisão do EMGFA, são assaltadas pelo Regimento de Comandos às ordens de Otelo
Saraiva de Carvalho, chefe do Comando Operacional do Continente (COPCON), a
culminar a divulgação dum documento “insultuoso” subscrito por este a convidar
de forma nada digna o abandono de Vasco Gonçalves de primeiro-ministro e a
proibi-lo de entrar em quartéis.
É numa dita “Assembleia do MFA em
Tancos” em 5 de Setembro de 1975, constituída por militares escolhidos
“ad-hoc”, delegados intencionalmente seleccionados, que o MFA progressista e
revolucionário se vê afastado do seu processo, ao decapitarem-lhe a sua cabeça,
aquele que será sempre para nós (quer militares do MFA que o seguiam, quer para
as populações que o estimavam e amavam) mais do que o General Vasco Gonçalves
-o eterno Companheiro Vasco-timoneiro das mais singulares e valiosas conquistas
que a nossa Associação Conquistas da Revolução (3) se constituiu para
preservar, muito particularmente em sua homenagem e ao povo português que o
mereceu- que mereceu este HOMEM, simples, íntegro e revolucionário, ao leme
desta barca.
Passados mais de quinze anos
Vasco Gonçalves dá uma longa entrevista, editada em livro, em 2002 (1). É seu,
este excerto premonitório, da situação que vivemos, agora em 2014: “…já
havia o objectivo de romper com aqueles militares que mais consequentemente
apoiavam as aspirações populares e travar o aprofundamento da democracia…e digo
isto passados tantos anos…porque desde a queda do 5º Governo Provisório temos
vindo a assistir à reconstituição duma democracia política que convive bem com
as limitações dos direitos sindicais e políticos dos trabalhadores, com a
destruição do sector público da economia, com a destruição da reforma agrária,
com a sucessão de pacotes de Leis cada vez mais gravosos para os trabalhadores
que vão sendo aplicados à medida que a direita e a reacção ganham cada vez mais
força”.
Em 2004,um ano antes de morrer,
Nestor Kohan, professor e filósofo argentino,(2) faz a última entrevista que
Vasco Gonçalves concede. O entrevistador, entusiasmado com o militar que veio
encontrar, traça bem, na introdução, o perfil do general e da revolução, um
pouco aquilo que todos nós sentimos, da qual retiramos excertos.
«…Vasco Gonçalves…(ao invés dos
Generais que conheci é sem dúvida uma avis rara) fala pausadamente, de forma
suave e calma. Tem os gestos amáveis e a atitude de um velho professor
universitário. Dirige-se aos interlocutores com um ênfase pedagógico que não
consegue dissimular. A Revolução dos Cravos foi atípica. Teve lugar na Europa
Ocidental, precisamente quando se supunha que a revolução já estava fora da
agenda. Segundo escreveu o próprio Vasco Gonçalves, “a Revolução de Abril
terá sido, na Europa Ocidental e depois da Comuna de Paris, a maior ofensiva
feita contra o sistema capitalista”. Precisamente quando nos restantes
países europeus se abriam as flores murchas do eurocomunismo e da
social-democracia (correntes que renunciavam a toda a rebelião radical… por
princípios políticos) Portugal pôs na ordem do dia a questão do poder. Isto
teve lugar em plena crise capitalista (1973-1974), quando o dólar e o petróleo
sofreram um abanão mundial, liquidando o keynesianismo do pós guerra e abrindo
caminho ao neoliberalismo.»
«Esta revolução realizada em
plena guerra fria deslocava o papel tradicional das Forças Armadas europeias,
especialistas na guerra contra-revolucionária nas colónias africanas e, ao
mesmo tempo, peritas na contra-revolução e na tortura pelos militares latino
americanos (Brasil, Argentina, Chile, etc). A de Portugal foi uma revolução que
questionava num mesmo movimento o vínculo imanente entre capitalismo, fascismo
e colonialismo. Três formas de dominação que costumam apresentar-se na
literatura política como se fossem fenómenos desligados entre si.»
«Em Novembro de 1975, um ano e
meio depois do início da Revolução dos Cravos, o governo revolucionário foi
derrubado. Caiu perante um golpe de estado de direita. Diferentemente das
intentonas anteriores, este novo golpe contra-revolucionário saiu vitorioso.
Foi instigado pelo Partido Socialista Português – Mário Soares como responsável
civil –, pelos EUA, pela social democracia internacional e pela Internacional
Democrata Cristã.»
«A partir do triunfo da reacção
de direita com máscara social democrata, em Portugal tudo volta à “normalidade”...
isto é, ao capitalismo, à exploração e à obediência.»
«Vasco Gonçalves é hoje (2004) um
homem idoso, mas ainda se lhe incendeia o olhar com o brilho de um adolescente,
quando fala da revolução que o teve como principal expoente das forças populares.
Modesto e simples, sente-se surpreendido quando uma humilde camponesa, mais
velha que ele, vestida de negro da cabeça aos pés, se aproxima para lhe
acariciar a cara, expressar-lhe a sua admiração e sentar-se com ele como se
fosse um filho.»
Mas é nesta, última entrevista da
sua vida, feita a Nestor Kohan que Vasco diria: “penso que hoje não há
espaço para uma “terceira via”. A experiência do passado e do presente
demonstra-nos que a “terceira via” caminha sempre para a direita, caminha
sempre num rumo reformista do capital, para a ideia de uma suposta “reforma do
capital”. Não se trata de alcançar um capitalismo reformado sem superar o
capitalismo. O capitalismo não é reformável, porque as relações sociais nas
quais se baseia, e sem as quais não pode sobreviver, são intrinsecamente
injustas e de exploração do homem pelo homem. A “terceira via” não persegue
conquistas profundas nas estruturas económicas e sociais. Basta olhar a
Inglaterra, a França e a Alemanha para corroborá-lo. Jospin em França, Schroeder
na Alemanha e Blair na Grã-Bretanha adoptaram na prática políticas neoliberais
e de privatizações. Todos os que pretendem colocar-se entre o capitalismo e o
socialismo, no final acabam por adoptar políticas neoliberais”.
Dez anos depois tudo se agravou
com Hollande, com Merkel, com Cameron e com outros. Ao comemorarmos 40 anos do
25 de Abril e 40 anos da tomada de posse de Vasco Gonçalves, como
primeiro-ministro, estão os portugueses conscientes da diferença entre o que se
conseguiu em 1974 (e no ano seguinte) e o que não se consegue em 2014, entre o
que se conquistou com Abril e o que tem sido destruído com Novembro (e desde
Novembro) e com as tóxicas políticas neoliberais dos dias de hoje.
Por isso “companheiro Vasco” se é
com muita saudade que te recordamos é ainda com a tua voz nos nossos corações
que manteremos alento a prosseguir na tua luta que é, e será sempre, a nossa
luta. Como sempre disseste: «Há que lutar, no dia a dia, por reformas cujo
conteúdo contraria a lógica do pensamento único, dominante, a pretensão ao
domínio universal dos interesses de um restrito conjunto de forças económicas».
Vasco e Abril não morrem. São eternos companheiros.
M. Duran Clemente
(1) - “Vasco Gonçalves — um
General na Revolução”, Entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, Outubro de 2002.
(2) - “Vasco Gonçalves - Entrevista de Nestor Kohan para Rebelión/Accion, em Outubro de 2004.
(3) - “Tudo já foi dito e tudo resta para dizer do Companheiro Vasco, … – pelo seu exemplo, pela sua obra, pelo seu pensamento -quisemos, inicialmente, que o seu nome fosse o nome da nossa Associação – o que só não aconteceu por obstáculos impossíveis de superar ….”. Declaração dos princípios justificativos da criação da Associação Conquistas da Revolução em 2011.
(4) -“Grupo dos Nove”: Melo
Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa
Neves, Sousa e Castro, Vítor Alves, Vítor Crespo.
Eu,filho de pobres trabalhadores do campo e um simples operário emigrante na Holanda onde resido desde 1964 e já velhote,91 anos,é com profunda saudade que recordo Vasco Gonçalves o Companheiro do Povo que era meu amigo e a quem eu enviava os meus desabafos em poesia e a quem eu visitei em sua casa sempre que ia a Portugal visitar os meus familiares.Guardo com carinho as suas missivas de incentivo que me enviava em apreço pelos meus desabafos.Quando de Portugal me telefonaram a comunicar a sua súbita morte,eu chorei.
ResponderEliminarO grande Vasco. Tudo teris sido diferente com a ajuda que nao permitiram que nos desse
EliminarÉ com enorme tristeza que, cada vez mais, assumo que a nossa sociedade, em primeiro lugar a militar, fui injusta e desonesta para este Grande Revolucionário Português. Este documento, que só agora vi e li, clarifica muito daquilo que eu nem queria acreditar que fosse verdade.
ResponderEliminarEmbora vindo de uma classe burguesa Vasco Gonçalves foi grande amigo do Povo.
ResponderEliminarSo sabia ser amigo. Grande homem que tive o privilégio da sua amizade pessoal, de ferquentar a sua casa de o recebermos no Alentejo em casa de maus pais. Descansa em paz companheiro Vasco
EliminarVergonha. Todas as pessoas que são dignas, deveriam sentir vergonha de não terem compreendido e apoiado o Vasco Gonçalves. Culpados, todos os que não estavam ao lado do Vasco Gonçalves são culpados do estado en que està Portugal hoje. Enforquem-se.
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