Homenagem ao Carlos Barbeitos )escrita maravilhosa da filha Diana Pimentel Barbeitos) ao Homem Amigo ....homem franzino mas grande de alma ...que mais se pode dizer.....posso dizer.Fazes -me falta.Fazem sempre faltam Amigos como tu....Ainda agora pensava ir à Galiza estar por aí contigo....desabafarmos.!!!Abraço à nossa "terra .mãe"---MDC.
o tempo arde
[ para os meus irmãos, pelo nosso pai. ]
[ para os meus irmãos, pelo nosso pai. ]
Sei que não vou saber escrever-te. Sei que estas são fracas palavras para ti, por ti. Morreste. Escrevo-te em falha, em falta. Há um mês, ontem, para sempre, começava a acabar a vida, a tua, a nossa.
Os relógios de casa – a que davas corda, dia a dia – pararam um a um; horas, minutos, segundos anulados. Manhãs, tardes, noites suspensas como o pêndulo quieto do relógio da cozinha. Os teus e os meus lentos e leves passos eram então a medida do tempo que se perdia, da dor que crescia.
Havia incêndios na serra (intuiste, ainda). Havia em ti um incêndio interior. Nem a promessa de trovoada pela madrugada atenuava o cheiro a terra queimada por dentro de ti e sob o chão da nossa vida a ruir.
O ar parou, murmuraste. Pousei muito leve a minha mão sobre o teu peito, a respirarmos a um só compasso, a tentar ensinar-te o que o teu corpo perdia. Dá-me um abraço, pedi-te; pensei poder guardar-te inteiro, ainda, dar-te o ar em mim. Falharam-te os braços até então sempre fortes sempre abertos sempre nossos.
Foste para longe de casa. A esperança segurava-nos e abandonava-nos e segurava-nos e abandonava-nos (aos filhos, aos amigos, aos teus companheiros e às tuas companheiras, contigo sempre, como tu sempre com todos). Um dia durou um mês, uma hora um dia. Duros dias (pouco, ainda).
Uma tarde os teus óculos partiram-se e a pilha do relógio cansou-se. Não o sabia então: o temor, o terror, o susto, o sobressalto estavam ainda a começar. Um tubo a invadir os teus pulmões carbonizados, a boca, o nariz, as veias tomados por objectos estranhos, os sentidos anulados, a tua voz silenciada, os braços sem pulsar, o sangue a escapar de ti, tu inteiramente nu do que foste, agora só um lençol, a respiração por fora de ti (o som, o horror), as máquinas, todos os sinais a cada dia menos vitais e nem fio de vida em ti.
Nós do outro lado de uma espécie de vida – ainda não sabemos qual nem como sem ti – vazios à espera da espera de quê? – sem saber onde tu. Sim, o lugar tinha um nome, cuidados intensivos (eu senti então – não disse – que merecias cuidados que se dissessem de outro modo porque o teu sempre foi um cuidado delicado e dedicado, em reserva e pudor, nas palavras, no amor, na perda, na dor).
Conta-me uma história, tinhas-me pedido numa das madrugadas antes de. Contei-te histórias que me contaste tu, que toda a vida vivemos. Que aprendi a ler à tua secretária ao som do disco de vinyl em que Leonard Bernstein ensina os sons e as vozes de ‘Pedro e o Lobo’ e que Prokofiev me parecia o nome de um amigo.
Lembrámo-nos do corpo forte da nadadora da família a atravessar sem temor o Minho, das ameixas que eu e a Catrineta lanchámos no telhado da coelheira, dos coletes salva-vidas para andarmos de barco a remos rio Minho acima, dos pic-nics e dos bailes de Agosto ao som do gira-discos (agora mudo), do complicado comboio (agora desmontado) que construíste no sótão para e com o nosso irmão, lembrámo-nos da sagração da primavera com que celebrámos a Mada coroada de flores da quinta (e tu a trautear ‘As quatro estações’ de Vivaldi), dos mergulhos de verão da Mada e da Maggie no tanque (hoje vazio), das pescarias no rio Mouro com as catraias, dos aviões e dos barcos, modos de partir que toda a vida escolheste e com paciência construíste como promessa de liberdade.
Não sabias o desamor (guardaste cartas e fotografias por mais de cinquenta anos; o mesmo amor, surpresa, ternura do primeiro olhar, da primeira paixão, de todas as palavras e de todas as perdas – sem um lamento audível). Amaste amar, amaste muito e muitos, amaste a vida.
Partimos, como tu, da quinta onde a vinha foi cultivada pelas tuas mãos; faltar-nos-á a vindima deste ano, por décadas, para toda a vida. Não guardei entre os dedos um punhado de terra: a terra à terra pertence, ensinaste-me. Sei que moro em terra em corpo de ninguém.
‘É o fim, filha’; acreditei em ti, como sempre.
Sinto saudades do passado contigo futuro. Do futuro de ti.
O tempo arde. Para sempre. Diana Pimentel (Barbeitos)
Os relógios de casa – a que davas corda, dia a dia – pararam um a um; horas, minutos, segundos anulados. Manhãs, tardes, noites suspensas como o pêndulo quieto do relógio da cozinha. Os teus e os meus lentos e leves passos eram então a medida do tempo que se perdia, da dor que crescia.
Havia incêndios na serra (intuiste, ainda). Havia em ti um incêndio interior. Nem a promessa de trovoada pela madrugada atenuava o cheiro a terra queimada por dentro de ti e sob o chão da nossa vida a ruir.
O ar parou, murmuraste. Pousei muito leve a minha mão sobre o teu peito, a respirarmos a um só compasso, a tentar ensinar-te o que o teu corpo perdia. Dá-me um abraço, pedi-te; pensei poder guardar-te inteiro, ainda, dar-te o ar em mim. Falharam-te os braços até então sempre fortes sempre abertos sempre nossos.
Foste para longe de casa. A esperança segurava-nos e abandonava-nos e segurava-nos e abandonava-nos (aos filhos, aos amigos, aos teus companheiros e às tuas companheiras, contigo sempre, como tu sempre com todos). Um dia durou um mês, uma hora um dia. Duros dias (pouco, ainda).
Uma tarde os teus óculos partiram-se e a pilha do relógio cansou-se. Não o sabia então: o temor, o terror, o susto, o sobressalto estavam ainda a começar. Um tubo a invadir os teus pulmões carbonizados, a boca, o nariz, as veias tomados por objectos estranhos, os sentidos anulados, a tua voz silenciada, os braços sem pulsar, o sangue a escapar de ti, tu inteiramente nu do que foste, agora só um lençol, a respiração por fora de ti (o som, o horror), as máquinas, todos os sinais a cada dia menos vitais e nem fio de vida em ti.
Nós do outro lado de uma espécie de vida – ainda não sabemos qual nem como sem ti – vazios à espera da espera de quê? – sem saber onde tu. Sim, o lugar tinha um nome, cuidados intensivos (eu senti então – não disse – que merecias cuidados que se dissessem de outro modo porque o teu sempre foi um cuidado delicado e dedicado, em reserva e pudor, nas palavras, no amor, na perda, na dor).
Conta-me uma história, tinhas-me pedido numa das madrugadas antes de. Contei-te histórias que me contaste tu, que toda a vida vivemos. Que aprendi a ler à tua secretária ao som do disco de vinyl em que Leonard Bernstein ensina os sons e as vozes de ‘Pedro e o Lobo’ e que Prokofiev me parecia o nome de um amigo.
Lembrámo-nos do corpo forte da nadadora da família a atravessar sem temor o Minho, das ameixas que eu e a Catrineta lanchámos no telhado da coelheira, dos coletes salva-vidas para andarmos de barco a remos rio Minho acima, dos pic-nics e dos bailes de Agosto ao som do gira-discos (agora mudo), do complicado comboio (agora desmontado) que construíste no sótão para e com o nosso irmão, lembrámo-nos da sagração da primavera com que celebrámos a Mada coroada de flores da quinta (e tu a trautear ‘As quatro estações’ de Vivaldi), dos mergulhos de verão da Mada e da Maggie no tanque (hoje vazio), das pescarias no rio Mouro com as catraias, dos aviões e dos barcos, modos de partir que toda a vida escolheste e com paciência construíste como promessa de liberdade.
Não sabias o desamor (guardaste cartas e fotografias por mais de cinquenta anos; o mesmo amor, surpresa, ternura do primeiro olhar, da primeira paixão, de todas as palavras e de todas as perdas – sem um lamento audível). Amaste amar, amaste muito e muitos, amaste a vida.
Partimos, como tu, da quinta onde a vinha foi cultivada pelas tuas mãos; faltar-nos-á a vindima deste ano, por décadas, para toda a vida. Não guardei entre os dedos um punhado de terra: a terra à terra pertence, ensinaste-me. Sei que moro em terra em corpo de ninguém.
‘É o fim, filha’; acreditei em ti, como sempre.
Sinto saudades do passado contigo futuro. Do futuro de ti.
O tempo arde. Para sempre. Diana Pimentel (Barbeitos)
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