Exmo. Senhor
Conselheiro Joaquim de
Sousa Ribeiro
Presidente do Tribunal
Constitucional
Escrevo a V. Ex.ª na minha tripla
qualidade de cidadão, de reformado e de militar.
Deste modo, peço a V. Ex.ª que
considere que nada do que a seguir exponho deverá conduzir a extrapolações para
o âmbito pessoal, por serem, de todo, inadequadas e sem fundamento.
Escrevo também na sequência dos dois
últimos acórdãos do Tribunal Constitucional, a que V. Ex.ª superiormente
preside.
Assumo, por outro lado, que o Estado,
e as Instituições que compõem a sua estrutura funcional, é um instrumento que a
Comunidade cria, definindo os seus limites de acção, para a construção de um
Futuro que os seus membros – os cidadãos – desejam comum, se processe de forma
segura, exequível, viável. Nesta perspectiva, cada cidadão abdica de uma parte
da sua autonomia e da sua liberdade, em nome desse Futuro comum. Este facto não
obsta, pelo contrário, reforça o inalienável direito, melhor, dever de cada
cidadão de questionar, de criticar, a acção dos diversos órgãos e instituições
do Estado, exercício imprescindível de participação individual naquela
construção, um exercício efectivo de cidadania e de expressão da soberania da
Comunidade.
1. Assim, e como Cidadão, começo por
relevar os aspectos determinantes da avaliação política que faço da acção
desenvolvida pelo actual governo, e não só, tendo presente que, em Democracia,
a legitimidade de um governo comporta duas condições obrigatórias, inseparáveis
e complementares: resultar de eleições livres e democráticas; prática
governativa conduzida sob, e dentro, da Constituição da República, no respeito
pelos Valores e Princípios nela consagrados, definindo objectivos e
concretizando acções que permitam à Comunidade, à Nação, alcançar superiores
níveis de bem-estar e de realização humana, individual e colectivamente.
Ora,
se a primeira condição foi cumprida, já a prática governativa contrariou
manifestamente a segunda:
Ø Após a tomada de posse do governo, os
partidos que formam a coligação governamental rejeitaram, de facto, os
programas políticos com que se tinham apresentado às eleições;
Ø Recusam a Constituição da República
como Lei subordinante de todas as outras, embora aqueles partidos tenham
concorrido a eleições cujas regras a ela se submetem e, mais do que isso,
perante a qual juraram cumprir as suas funções;
Ø Todas as situações, na sua definição,
circunstâncias e consequências, têm sido usadas para dividir os portugueses,
pondo intencionalmente uns contra os outros;
Ø Tem sido sistematicamente defendido o
cumprimento de compromissos assumidos com algumas entidades internacionais
(Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia),
pondo em causa compromissos assumidos com outras entidades internacionais
(Organização das Nações Unidas, p. ex.), que devem ser considerados de valor
superior àqueles e rejeitando o cumprimento de compromissos assumidos com todos
nós, como Comunidade;
Ø Tem sido constante a chantagem exercida
sobre outros órgãos da estrutura funcional do Estado, em particular o Tribunal
Constitucional. Chantagem transformada em ameaça aos cidadãos, com afirmações
governamentais claras quanto à forma, e conteúdo, da sua prática governativa:
se uma determinada norma, ou diploma, não merecer a concordância do Tribunal
Constitucional, então surgirá outra norma, ou lei, mais pesada, mais austera,
mais gravosa para os cidadãos.
Para tentar justificar todos estes factos, o governo alega estarmos
sujeitos a uma “situação de emergência económica e financeira”. Isso mesmo foi
exposto, de forma dramática, pelo chefe do governo, no início das suas funções,
e na Assembleia da República, ao afirmar, com veemência, ter o governo
constatado haver “um colossal desvio nas contas públicas”.
No entanto, e perante a gravidade da situação descrita, o governo:
Ø Não apresentou a sua demissão por não
ter condições para governar no cumprimento dos programas que os partidos da
coligação tinham defendido na campanha eleitoral, e com os quais tinham obtido
os votos que os conduziram ao Poder;
Ø Não requereu, com carácter de urgência, uma
auditoria independente às contas públicas, por forma a informar os cidadãos,
com verdade e com transparência, da real situação que todos tínhamos que enfrentar,
suas causas, consequências e responsáveis;
Ø Não assumiu como sua a
responsabilidade de ultrapassar, e vencer, esse “colossal desvio”. Pelo
contrário, todas as ocasiões têm sido usadas para atribuir a governos
anteriores, e a todos nós, a responsabilidade pelo “estado a que chegámos”.
A estes factos deverá acrescentar-se um outro, de idêntica relevância: a
Assembleia da República, através da sua maioria, dando “corpo” ao
auto-designado “arco da governabilidade” (que triste e pequenina forma de dizer
“Somos todos democratas desde que sejamos nós a mandar”!), também se escusou a
tomar a iniciativa de exigir a necessária, e urgente, auditoria independente às
contas públicas. A Assembleia da República tinha esse dever, quer porque o
governo fugiu a fazê-lo, quer porque é à Assembleia da República que cabe a
responsabilidade de aprovar os orçamentos de Estado. Isto é, também ela,
através da maioria, denegou as suas responsabilidades.
Estamos, pois, perante um governo ilegítimo pelo exercício que
efectivamente faz do Poder que os Portugueses, enquanto cidadãos, lhe
concederam naquelas eleições livres e democráticas.
Importa ainda referir um acto de enorme significado, e consequências,
praticado pela pessoa que desempenha o cargo de Presidente da República. Ao
optar por ser remunerado pelas suas pensões de reforma (legalmente) em
detrimento do vencimento atribuído ao Presidente da República, esta pessoa
afirmou, claramente, que os seus interesses pessoais se sobrepõem ao cargo para
que foi eleito: o de máximo representante de uma Comunidade, de um Povo
inteiro, e, por inerência, de Comandante Supremo das Forças Armadas.
À ilegitimidade do governo soma-se, deste modo, a prevalência de
interesses pessoais sobre os Valores e Princípios que são imprescindíveis para
sustentar a coesão de uma Comunidade, a Nação Portuguesa; a afirmação
inquestionável da sua Dignidade colectiva, isto é, da sua Soberania perante
todas as outras Comunidades; a defesa da sua inalienável Independência na
escolha do Futuro comum ansiado pelos seus membros, os Portugueses, cidadãos
Inteiros e Livres.
Substituiu-se, de facto, o primado da Ética e da Moral, pelo primado dos
Interesses, individuais (sobretudo) ou de grupo, numa integração plena nos
“Mercados”, sendo estes amorais e apátridas por auto-definição, por imperiosa
necessidade e por prática real.
(Permita-me, Excelência, um pequeno parêntesis. Sendo “Os Mercados” a
estrutura de topo da complexa globalização em que vivemos, e sendo “Os
Mercados” amorais e apátridas por auto-definição, caberá perguntar: Nós,
cidadãos comuns, fazemos parte d’”Os Mercados”? Se sim, deveremos “seguir o
exemplo dos nossos superiores”, ou seja, deveremos ser igualmente amorais e
apátridas? Consequência: se cada um de nós proceder como procedem “Os
Mercados”, isto é, sem “estados da alma” perante os efeitos que as nossas
acções possam provocar nos outros, por exemplo, n´”Os Mercados”, estará tudo
“certo”. Se não, então nada, rigorosamente nada, temos a ver com os problemas
que “Os Mercados” tenham, ou possam vir a ter. Claro que isto é uma
simplificação “ingenuamente” enorme e superficial do “contexto” – interno e
externo – em que vivemos. Mas é suficiente para “colocar em cima da mesa” o
único factor que, efectivamente, conta neste “contexto”: a Força!)
Excelência, este é, a meu ver, o contexto interno que os acórdãos do
Tribunal Constitucional não traduzem. Bem pelo contrário:
Ø É expressa e reiteradamente relevado
o “contexto de emergência económica e financeira”, cuja definição e
identificação de causas, efeitos e responsáveis, o governo (e a maioria na
Assembleia da República) se recusou a fazer, refugiando-se num intelectual e
politicamente débil argumento próprio do movimento NHA (Não Há Alternativa)
para impor, “custe o que custar” uma única solução, a austeridade, como o caso
da Contribuição Extraordinária de Solidariedade é exemplo. Obviamente que a
alegação de que se trata de uma situação NHA não ilude o facto de se tratar,
muito simplesmente, de uma opção política e ideológica inteiramente assumida;
Ø A solução é aceite, assumindo-se como
preponderantes desígnios nacionais “o cumprimento das metas orçamentais”, “o
cumprimento dos objectivos e compromissos acordados com instâncias
internacionais, “a expectativa de recuperar e manter o acesso pleno ao
financiamento de mercado”;
Ø Ao mesmo tempo transforma efeitos da
“situação de emergência económica e financeira” – “diminuição das receitas do
sistema de segurança social”, “aumento do desemprego”, “redução dos salários”,
“novas tendências migratórias”, “aumento das despesas com o apoio ao
desemprego”, “situação de pobreza” – em causas dessa mesma “emergência
económica e financeira”;
Ø Por outro lado, se recusa a solução
(CES) como definitiva, pois que é apresentada como transitória, não deixa de a
manter refém do “cumprimento das metas orçamentais: a sua continuidade não será
definitiva, mas poderá ser…permanente;
Ø Este “sequestro” impede que os
pensionistas e reformados depositem confiança na inalterabilidade da sua
situação, porquanto “é um facto que indicia reduzida previsibilidade e
estabilidade” da sua relação para com o Estado.
Aliar a transitoriedade permanente à imprevisibilidade da relação com o
Estado a que ficam sujeitos os pensionistas e reformados, deixa-os totalmente
desamparados, sem expectativas de vida para além das impostas anualmente pelos
sucessivos orçamentos do Estado. A esperança de vida de cada pensionista e
reformado passa a depender, acima de tudo, do OE (Orçamento do Estado)!
Mas serão só os pensionistas que ficam, deste modo, privados de qualquer
futuro que não esteja devidamente contemplado num orçamento do Estado e que não
ultrapasse a vigência desse orçamento? Não seremos todos nós – individual,
familiar e colectivamente – que estamos perante a colonização do nosso futuro
feita por uma “emergência económica e financeira” que não sabemos o que seja,
como surgiu, quais os responsáveis?
Que valor têm, hoje, os compromissos assumidos por quem quer que seja, se
um dos factores considerados nesses compromissos estiver relacionado, de algum
modo, com verbas inscritas (ou não…) no orçamento do Estado?
Que valor têm as decisões dos Tribunais se um dos factores em que se
basearem for, p. ex., rendimentos dependentes do Estado?
Uma análise rigorosa dos contextos em que vivemos condicionam as escolhas
que devemos fazer para a defesa e o desenvolvimento do bem-estar e da
construção do Futuro que, como Comunidade, desejamos comum, estabelecendo
prioridades na sua concretização, sob a imprescindível determinação dos Valores
e Princípios em que acreditamos, nos reconhecemos e revemos. Mas quando esses
contextos assumem um carácter determinante, passam a ser os Interesses que
prevalecem e que, mesmo quando se apresentam como de toda a Comunidade, isto é,
Nacionais, rapidamente nos confrontamos com um eufemismo, vago e debilmente
definido, o “Interesse Nacional”, para constatarmos que o que surge como
efectivamente relevante são os interesses privados, alguns privadíssimos,
muitos obscuros (os casos BPP, BPN, BCP, BANIF, PPP’s, SWAP’s, poderão ter
outra leitura?).
Excelência, quando a vida de uma Comunidade perde o primado dos Valores e
dos Princípios, e aceita, ou lhe vê ser imposta a prevalência dos Interesses;
quando a Ética e a Moral são subjugadas pela Lei; e quando esta se vê
determinada pela constante evolução de “contextos” mal definidos e pior
justificados; perde-se por completo o respeito e a confiança nas instituições,
sobretudo no Estado, e mesmo entre os membros da Comunidade, entre si.
Ficam escancaradas as portas para que a única determinante seja a Força!
2. Como Reformado, e após 47 anos a
colocar à guarda do Estado, todos os meses, os montantes que o Estado me impôs para
ter uma pensão de reforma dentro das leis que igualmente me impôs, condições
para que me garantisse aquela pensão, constato que afinal o Estado trata esse
valor como se fosse dele e não meu!
Excelência, sabemos ambos que, se porventura eu (ou qualquer outro
reformado) tivesse colocado este montante numa entidade privada para, no final
da vida profissionalmente activa, pudesse ter um rendimento expectável e
estável, que me permitisse gerir a minha velhice, e se essa entidade privada
fizesse o que o Estado me está a fazer, tal acto configuraria um caso de
polícia, por roubo e abuso de poder.
Por isso, Excelência, não posso calar a minha indignação perante um acto
de violência criminosa praticada por este governo, tanto mais que todas as
pretendidas justificações mais não são que mistificações de uma concreta
realidade: a “emergência económica e financeira” não está definida, nem nos
seus contornos, nem na sua extensão; das causas, como já salientei, quer o
governo quer a maioria na Assembleia da República fugiram da sua identificação,
e da consequente identificação de responsáveis; e os efeitos das medidas que,
supostamente, a resolveriam (e que têm atingido, sempre e apenas, a maioria da
população que tem no seu salário ou na sua pensão a única forma de sustentar a
sua vida), foram transformados em causas desta situação, como também já referi.
Permita-me, Excelência, que abra um parêntesis para uma pergunta que me
angustia: como é possível que alguém considere que os milhares de crianças que
chegam às Escolas com fome (mais de 10.000, segundo números do Ministério da
Educação) sejam uma causa e não um criminoso efeito da austeridade que nos está
a ser imposta?
Ainda como reformado, acompanho a “dor e o desprezo” que juízes e
diplomatas sentem por terem sido “proibidos” de participar na “solidariedade”
que a CES impõe!
Ironia? Apenas como último instrumento do exercício, de que não abdico,
do meu Direito à Indignação. E praticado quando se apresentam outros Direitos
igualmente inalienáveis – e igualmente inscritos na Constituição da República
-, exigindo serem, também, exercidos.
3. Como Militar, começo por situar o
âmbito de actuação em que se inscreve a Condição Militar: no limite dessa
actuação, o militar morre e mata. Daí que a Condição Militar tenha, como sua
matriz fundacional, três exigentíssimas opções políticas e humanas. Tão
exigentes são essas opções que determinam como sua primeira, inultrapassável e
definitiva expressão, o juramento que, solenemente, publicamente, e
individualmente, cada militar faz perante a Comunidade a que pertence, perante
o Povo de que faz parte sem margem para quaisquer dúvidas, e com cuja defesa se
compromete totalmente. Importa realçar que este juramento não é feito perante o
governo (qualquer que ele seja), ou uma instituição qualquer.
Este juramento, que inclui, explicitamente, o “cumprir e fazer cumprir a
Constituição da República”, termina por afirmar a sua (individual, realço) disponibilidade
para o “sacrifício da própria vida, se necessário for”. Tenha a certeza,
Excelência, que me acompanhará quando rejeito liminarmente quaisquer
interpretações que possam sequer sugerir que, ao assim jurarem, os militares
estão a denunciar uma qualquer patologia suicida.
Mas esta morte acontece, e é consequência,
de um conflito armado: o militar também mata. E mata outros seres humanos.
Renovo a certeza de que V. Ex.ª me acompanha: não é por serem psicopatas
assassinos que os militares matam.
Não sendo nem suicidas nem
psicopatas, a Morte, para os militares – insisto, individualmente - só tem
sentido se irrecusavelmente, incontornavelmente, imprescindivelmente,
definitivamente, estiver sustentada, e sustentar, Valores e Princípios que cada
militar sinta, reconheça e reveja como indiscutível e inalienavelmente seus.
A estas duas opções políticas e humanas, exigentíssimas como disse,
junta-se uma outra. Num regime democrático um militar é apartidário. Mas ser
apartidário é, também, uma exigentíssima opção política e humana: significa que
todos os membros da Comunidade que jurou defender são inquestionavelmente
detentores do Direito de serem defendidos, quaisquer que sejam as suas escolhas
políticas, religiosas, profissionais, ou a côr da pele, o sexo, o nível de
riqueza, a idade, enquanto, como cidadãos, reconheçam, partilhem e pratiquem os
Valores e Princípios sob os quais se organiza a Comunidade, e que estão
inscritos na Constituição da República.
Num regime democrático, as armas que os militares têm nas mãos não podem
ser, nunca, a primeira opção para dirimir conflitos, sejam estes internos ou
externos. Como primeira consequência inexorável, o Poder Militar subordina-se
ao Poder Político. Uma segunda consequência tem que ser respeitada e assumida,
face às três opções políticas e humanas referidas: subordinação não é sinónimo
de submissão.
Mas para além deste relacionamento directo entre Poder Militar (como
politicamente subordinado) e Poder Político (como politicamente subordinante),
ambos se submetem à Constituição da República, enquanto Lei Fundamental onde se
inscrevem os Valores e os Princípios reconhecidos pelos cidadãos como seus,
quer para o seu activo comprometimento colectivo na vivência do Presente, quer
para a sua participação, individual e colectiva, na construção de um Futuro
desejado comum. Ao jurarem “cumprir e fazer cumprir a Constituição”, os
militares – o Poder Militar – submetem-se perante o Povo, não perante este ou
aquele governo. Ao constituir-se como Poder Político, um governo democrático
submete-se ao Povo que o elegeu, para governar pelo Povo e para o Povo.
Por outro lado, a submissão de um a outro entre dois poderes (ou
instituições, ou pessoas) traduz-se, inevitavelmente, por parte de quem se
submete, na interiorização da irresponsabilidade por quaisquer actos
praticados, qualquer que seja a natureza destes, e na correspondente
responsabilização total pelos mesmos actos por parte de quem submete. Pelo
contrário, a subordinação impõe a definição de uma hierarquia de
responsabilidades, reconhecida, aceite e praticada pelos diversos actores
intervenientes.
Creio, Excelência, que pude expressar acima a minha profunda convicção
de que este governo tem dado provas sobejas de que assumir responsabilidades é
algo que não está nos seus propósitos: são inúmeras as vezes que os seus actos,
e suas consequências, são da “responsabilidade” de alguma instituição
estrangeira (a “troika”, p. ex.), ou interna (o Tribunal Constitucional tem
sido o “preferido”); de algo tão vago e tão omnipotente como “Os Mercados”; ou,
mais comummente, de todos os cidadãos, pelos quais e para os quais era suposto
exercerem a governação. E, quando qualquer destes “responsáveis” não é
“convincente”, tem encontrado sempre aberto o “refúgio” do movimento NHA.
Mas mesmo a subordinação está posta em causa. O Poder Militar jura
“cumprir e fazer cumprir a Constituição da República”, enquanto o Poder
Político, este governo, de facto a desrespeita. E tanto assim procede que não se
coíbe de afirmar, e praticar, o seu oposto: se uma lei não serve os desígnios
do governo, muda-se a lei. E se a lei pretendida for declarada contrária à
Constituição, apresenta outra “ainda mais gravosa”.
Mesmo “esquecendo por momentos” (como se tal fosse possível!), os
Valores, os Princípios, a Ética, a Moral, detenhamo-nos na Lei. O Estatuto de
Roma impõe, sem margem para dúvidas, a responsabilidade individual de quem
(militar ou civil) tenha cometido um Crime de Guerra ou um Crime Contra a
Humanidade. Isto é, a ninguém (por maioria de razão, a um militar) é permitido
invocar o “ cumprimento de ordens” quando delas resulte a prática de um
daqueles Crimes. Impõe, também, a responsabilidade acrescida dos superiores
hierárquicos, até ao nível mais elevado, ou seja, o Poder Político.
Fica claro, desta forma, o presente antagonismo entre estes dois Poderes
de Estado: por um lado, o Poder Militar mantendo o seu apartidarismo, mas,
simultaneamente, consciente de que os Valores e Princípios consagrados na
Constituição são para serem defendidos “mesmo com sacrifício da própria vida”;
por outro, o Poder Político, o governo, assumindo o primado dos Interesses em
desfavor dos Valores e Princípios sob os quais se apresentou a eleições, e aos
quais jurou Lealdade, a Lealdade que deveria pautar a sua acção governativa.
Desta deslealdade, e para além das várias consequências já apontadas,
resulta também o anular de um dos Princípios básicos de um Estado que se afirme
Democrático: a separação efectiva dos Poderes de Estado.
Na verdade, o Poder Executivo, o governo, exerce um controlo efectivo
sobre o Poder Legislativo (a maioria na Assembleia da República tem consentido,
senão apoiado, o contínuo desrespeito pela Constituição, e a menorização, senão
anulação, da acção realmente fiscalizadora, que lhe cabe, da prática
governativa), e sobre o Poder Judicial (a diferença de tratamento entre o comum
dos cidadãos e os “representantes dos Interesses instalados” é por demais
evidente).
E não é verdade, Excelência, que até o Tribunal Constitucional, sujeito
a mesquinha chantagem (inclusive estrangeira, pasme-se!), acaba por se vergar a
esta concentração de poderes no governo: a transitoriedade permanente de
algumas leis (a CES, p. ex.), e as expectativas dos cidadãos (não apenas os
funcionários públicos, não apenas os pensionistas e reformados, a própria
actividade económica) reduzidas à vigência do orçamento anual (exponenciada por
sucessivos “orçamentos rectificativos”) não são uma porta aberta para que os
Interesses se sobreponham às leis, para que a única lei com valor efectivo e
reconhecido seja a Força, a lei do mais forte?
Não creio, Excelência, que a enorme falta de confiança que se instalou
no País, sobretudo (ainda…) em relação aos Poderes de Estado, tenha outras
razões que não as que acima exponho.
Por último, faço um pedido a V. Ex.ª. Um pedido que se baseia na
consciência de que a guerra é um assunto demasiado sério para ser deixado
apenas nas mãos dos generais, ou apenas nas mãos dos políticos; a consciência
de que a guerra é uma questão muito séria e diz-nos respeito a todos. O que
obriga cada um de nós a procurar dentro de si as Razões, Valores e Princípios
Humanos pelos quais deve lutar, não apenas por si e pelos seus interesses
pessoais, por mais legítimos que sejam, mas numa partilha responsável,
solidária, cidadã, na construção de um destino comum, partilha que começa por
exigir, com carácter urgente e efectivo, responsabilidades a quem exerce os
Poderes de Estado, pois que, por eleitos que tenham sido, não lhes foi concedida
impunidade, nem “passado um cheque em branco”.
Vossa Excelência sabe, convictamente, onde podemos encontrar, na acção
deste governo, actos que permitam a cada um de nós ir até ao sacrifício da
própria vida, com plena confiança e sem nos sentirmos a defender meros
interesses privados, privadíssimos, obscuros, escondidos atrás de semânticas
“douradas”, sem nenhuma relação com Valores e Princípios Humanos?
Com os meus cumprimentos
António
Joaquim Almeida de Moura
Capitão-de-Mar-e-Guerra, Reformado
P.S.: Esta carta pretendo-a Aberta, pelo que a enviarei a outros membros
do Tribunal Constitucional, bem como a outras instituições e pessoas a quem
considero ser meu dever comunicar esta minha posição, pelo muito respeito que
me merecem.
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