GUINÉ-BISSAU – O
CAMINHO DA INDEPENDÊNCIA “DE JURE”
por Jorge Golias
O CONTEXTO
Carlos
Fabião, o 2º encarregado de governo da Guiné-Bissau, nomeado pelo presidente da
Junta de Salvação Nacional, General António de Spínola, chegou a Bissau no dia
7 de Maio de 1974.
Profundo
conhecedor da Guiné, onde esteve 6 anos na
entourage do General Spínola, foi com surpresa que tomou conhecimento da
Guiné diferente que se nos apresentava após o 25 de Abril. Submersa e submetida
no tempo da guerra, surgiu então adversa e subvertida.
No
dia 26 de Abril, 11 oficiais do MFA depuseram o Governador, General Bettencourt
Rodrigues, em virtude de o mesmo não reconhecer a JSN e dar ordens à PIDE para
seguir os capitães do MFA nas ruas de Bissau.
O
MFA na Guiné-Bissau, que estava pronto a intervir, no caso de falhar o golpe na
metrópole, constituindo-se em Plano B do MFA em Portugal, resolveu assim
clarificar a situação na Guiné e criar condições para que este território fosse
tratado de maneira diferente dos outros em face da declaração de independência
feita pelo PAIGC, no dia 24 de Setembro de 1973.
Esta
tomada de posição política unilateral foi reconhecida logo por 86 países, mais
do que aqueles com os quais Portugal tinha relações diplomáticas e logo apoiada
por uma Resolução da ONU, onde se convidava Portugal a abandonar o território.
A partir daqui éramos classificados como tropa de ocupação.
À
tomada do poder em Bissau seguiu-se a nomeação do Encarregado de Governo, o
Tenente-coronel Mateus da Silva, à data comandante do Agrupamento de
Transmissões. As funções de Comandante-Chefe passaram a ser desempenhadas pelo
Comodoro Almeida Brandão, comandante da defesa marítima.
O
primeiro contacto com o novo poder em Portugal foi feito pelo Tenente-coronel
Mateus da Silva com o Gen. Spínola, que o felicitou e lhe disse que aguardasse
ordens.
Mas
a realidade mudava de hora a hora e o novo poder em Bissau, que integrava o MFA
como gabinete de Governo, teve que tomar algumas medidas sem cobertura de
Lisboa, por se tornarem óbvias e para evitar ser ultrapassado pelos
acontecimentos.
Foi
o caso da libertação dos presos políticos da Ilha das Galinhas (afinal em
Lisboa já se tinha feito o mesmo) e o da recolha ao Campo de Instrução do
Cumeré dos PIDES que estavam a ser perseguidos nas ruas de Bissau. A ordem da
JSN de integrar os serviços da PIDE nos Serviços de informação militares não tinha
justificação na Guiné, por isso se encaminharam para Lisboa.
Na
cidade de Bissau, na Segunda-Feira seguinte ao 25 de Abril, dia em que chegou o
jornal Expresso com as notícias frescas do clima de liberdade em Portugal, o
ambiente alterou-se de imediato e começaram as manifestações reivindicando a independência
e dando vivas à JSN e ao PAIGC.
Fotos da manif em Bissau
A DESCOLONIZAÇÃO
O
Brigadeiro Carlos Fabião veio acompanhado pelo Tenente-coronel Almeida Bruno e
trouxe na mala centenas de fotos do General Spínola para serem distribuídas
pela população.
A
missão de Carlos Fabião consistia essencialmente em:
-negociar
o cessar-fogo;
-tratar
o PAIGC com um partido igual aos outros, que Spínola incentivou a se apresentarem
em Bissau;
-promover
um referendo com vista a uma solução federativa.
Era o “regresso” de Spínola.
Fabião fez um discurso de posse, previsível, até na última frase: “Por uma Guiné melhor num Portugal continuamente renovado”. Era a tese de
Spínola expendida desde os encontros no Senegal: “Evolução da Guiné para a
independência a 10 anos, numa comunidade lusíada”. Mas já era tarde! A Guiné já
era independente.
Discutimos esta questão nuclear
até às 2 da manhã. Nesta altura, Fabião, já convencido, admitiu que queria era
dizer “Por uma Guiné melhor e um
Portugal continuamente renovado”.
Carlos Fabião, o favorito de Spínola, oficial de grande prestígio, profundo
conhecedor da Guiné (onde esteve 6 anos), que dominava o crioulo e conhecia
quase todos os combatentes do PAIGC, inteligente, logo compreendeu que a Guiné
daqueles dias era outra. Estávamos entendidos. Fabião designou o capitão Sousa
Pinto seu ajudante de campo e a mim seu chefe de gabinete.
A Comissão Central do MFA[1]
passou a integrar o gabinete de governo. Esta decisão unitária haveria de
marcar positivamente o processo até ao fim.
Circulavam boatos de
arrasamento de alguns dos nossos Destacamentos militares fronteiriços e
apareceu uma circular em todo o TO pedindo negociações imediatas com o PAIGC.
Foto de Fabião
As últimas manifestações
deixaram um rasto de violência na cidade: montras partidas, carros vandalizados
e lojas saqueadas. De imediato chamámos os dois jovens que as lideravam. O Francisco Fadul (que seria 1º ministro
mais tarde) e o Aristides Pereira.
Eram contra a violência pós comícios, mas não sabiam como a ultrapassar.
Demos-lhes os meios necessários, uma viatura e megafones, e
responsabilizámo-los. A violência terminou em Bissau, mas começou noutras localidades.
Os jovens líderes passaram a deslocar-se também ao interior e acalmaram os
ânimos.
Naqueles dias, se na metrópole era tudo socialista, na
Guiné era tudo pró PAIGC! Até os
Fulas, que antes estavam contra o PAIGC eram agora os seus maiores defensores!
Entretanto, começou a confraternização das NT com os
guerrilheiros do PAIGC. Recebemos em Bissau dezenas de fotos reportando os
encontros. Foi algo comovente, mas também preocupante. Os comandantes nada
puderam fazer. Foram os soldados de ambos os lados que tomaram estas
iniciativas. O cessar-fogo ia-se, assim, materializando, antes dos acordos
oficiais. Mais uma vez a realidade no terreno ultrapassava a decisão dos
políticos. Quando em 16 de Maio, na reunião de Dakar, se acordou o cessar-fogo, ele já existia no terreno.
Foto do cap Silva
Ramalho – encontro com guerrilheiros
Em Portugal já se gritava “nem mais um soldado para as colónias”. Na Guiné gritava-se pelo “regresso imediato a Portugal”.
Entretanto, nos quartéis, os cabelos começaram a crescer, baixou-se
a guarda, e apareceram os primeiros sinais de indisciplina. Ou se tomavam
medidas imediatas ou a situação saía fora do controlo. Em meados de Maio
determinámos a Estruturação Democrática
do MFA nas Unidades, através da eleição de Delegações de oficiais,
sargentos e praças. Foi considerada pelos mais conservadores como uma “hierarquia paralela”. Mas foi,
outrossim, uma abertura democrática para restabelecer a Hierarquia e a
Disciplina, condições “sine qua non” para uma condução eficaz do processo de
descolonização.
Mas esta organização só
funcionou porque foi alimentada, ou seja, constituímos grupos de contacto que
se deslocavam ao interior, levavam informação, que anulava os boatos e deixavam
aos camaradas do “mato” a sensação de pertença ao Movimento.
Surgiu então e em força o
denominado MPP – “Movimento Para a Paz”, movimento alargado de
oficiais, sargentos e praças, liderado pelo alferes Celso Cruzeiro, pugnando pela independência e pelo regresso
imediato das tropas a Portugal. Numa prova de força conseguiu reunir em Bissau
cerca de 1000 militares (incluindo alguns oficiais superiores).
Na Guiné ia-se reproduzindo o
ambiente que se vivia em Portugal. Parecia que a imprensa de Lisboa, à medida
que chegava a Bissau, inspirava factos semelhantes aos que relatava. Uma vez
mais se nos colocou o problema da unidade. Unidade que era fundamental e que
funcionava não só relativamente a Lisboa, mas também, e principalmente, ao
PAIGC. A vida do MPP foi efémera, pois em 5 de Junho deu-se a sua integração no MFA.
Em 25 de Maio dá-se a 1ª reunião de Londres entre
representantes de Portugal e do PAIGC. O MFA da Guiné só esteve representado na
reunião de Dakar.
Entretanto, em 28 de Maio,
chegou uma circular da JSN no sentido de o MFA
se diluir nas FFAA. A cumprir-se seria um erro crasso. Fabião decidiu a não
aplicação desta circular ao caso particular da Guiné, pois ele não abdicava do
MFA para o ajudar a resolver os problemas que surgiam constantemente. O MFA era
sempre a última instância a que se recorria para resolver todos os problemas
militares ou civis como manifestações, reivindicações, casos de polícia, greves
etc.
Em 6 de Junho (em simultâneo
com a 2ª Reunião de Londres), finalmente, temos notícias dos nossos camaradas
do MFA de Lisboa: chega a Bissau uma delegação que integrava o major Melo
Antunes, o capitão Pereira Pinto e o comandante Almada Contreiras. Reunimos
durante dois dias. Melo Antunes disse que estavam curiosos de conhecer o nosso
processo de democratização das FFAA e avaliar a sua eficácia no terreno,
eventualmente como exemplo a seguir em Portugal porque estava a grassar a
indisciplina nas Unidades, onde se sentia a influência da extrema-direita à
extrema-esquerda e até um certo antimilitarismo.
O que viram e ouviram na Guiné
deixaram-nos tranquilos e aprovaram e incentivaram a prossecução das nossas
políticas. Claramente estavam connosco no objectivo do reconhecimento da
independência, mas percebemos que a decisão lhes escapava. Melo Antunes traçou
um quadro bastante escuro da situação em Portugal, com o governo demasiado
fraco, o PR demasiado forte e a Comissão Coordenadora no meio daquilo, tentando
equilíbrios, mas não chegando para as solicitações. Daí o ter falhado uma das
suas missões principais que era a da ligação ao Ultramar.
No dia 13 de Junho o brigadeiro
Fabião recebeu uma mensagem (secreta e
urgente) a mandar apresentar em Lisboa, cinco oficiais do MFA da Guiné[2].
A mensagem tinha como remetente o CEMGFA (general Costa Gomes) e como
destinatário para informação o Presidente da República (general Spínola).
Em Lisboa, o capitão miliciano
José Manuel Barroso informou-nos de que estávamos acusados de “criar na Guiné
um clima de entrega ao PAIGC” e de que o mínimo que nos podia acontecer era
ser-nos dada por finda a comissão. Foi, aliás, o que lhe aconteceu a ele.
Na “Cova da Moura” cruzámo-nos com o Vasco Lourenço, que não sabia de
nada. Como falámos em alta voz apareceu o Almeida Bruno que se limitou a dizer
que “isto não passava de uma tempestade num copo de água”.
Costa Gomes recebeu-nos com
surpresa, pois não sabia de nada. Afinal, a mensagem foi feita pelo gabinete de
Spínola, mas em nome de Costa Gomes. Fomos ouvidos durante uma semana, várias
horas por dia, constantemente interrompidas por assuntos inadiáveis.
No final, usando mais
claramente da palavra, fê-lo com estes 6 pontos:
1. As
notícias particulares vêm deturpadas pela óptica pessoal;
2.
Acredita na irreversibilidade do processo se é verdade aquilo que contámos
(PAIGC dominante);
3. Sobre
redução das forças por regresso à metrópole, pediu para dizermos ao encarregado
de governo que pedisse 2 Batalhões ou mais;
4. Referiu
a necessidade de alfabetização dos militares e consciencialização política das
NT.
5. A
ordem de chamada foi para compreender a desmobilização militar da Guiné;
6. Pediu
para se investigar a origem e intenção da notícia dos 40 mortos (notícia falsa
que nós ignorávamos).
No
final, Costa Gomes, felicitou-nos pelo nosso trabalho e mandou-nos regressar,
incentivando-nos a prossegui-lo.
Em 1 de Julho realizámos a 1ª Assembleia Geral do MFA, em Bissau,
na qual aprovámos uma moção de apoio ao reconhecimento da independência da
Guiné-Bissau e ao reconhecimento do PAIGC como seu interlocutor legítimo, tal
como determinava a Resolução da ONU.
Em Lisboa também tudo se
encaminhava nesse sentido e o velho general acabaria por ceder e aceitar esta
evidência histórica, muito por influência do general Costa Gomes. Assim, em 27
de Julho aparecia, finalmente, a Lei 7/74 – Lei da Descolonização, onde se diz
que se aceita a autodeterminação com todas as suas consequências, inclusive a
independência.
Mas, pelo caminho, ainda
sofremos dois ultimatos de
comandantes locais do PAIGC, a Pirada e a Buruntuma. Fabião nomeou o major
Ornelas Monteiro, que foi por mim acompanhado, em representação do MFA. Dos contactos feitos com estes
comandantes, no Senegal e na Rep Guiné-Conakri, resultou a anulação dos
ultimatos. Estes incidentes, feitos à revelia da vontade das cúpulas do PAIGC,
foram atribuídos a intenções de “mostrar serviço” por parte destes comandantes.
Seguiram-se encontros no
Cantanhês, de missões do governo local e MFA com representantes do PAIGC, com
vista à preparação da transferência de poderes.
Em 29 de Julho fez-se a 2ª
Assembleia do MFA na Guiné, que foi mais um reconhecimento ao Brigadeiro Carlos
Fabião pela sabedoria, inteligência e coragem da sua conduta neste processo de
Descolonização.
Em 26 de Agosto, em Argel, anunciou-se o reconhecimento da
independência da Guiné-Bissau, com efeitos a partir de 10 de Setembro, Retirada
e Transf
erência de Poderes a 31 de Outubro.
Há quatro marcas essenciais que justificam o sucesso do MFA na
Guiné-Bissau[3]:
- a
unidade de pensamento e de acção;
- a
preservação da hierarquia e da disciplina nos quartéis, pela adopção da estruturação
democrática;
- o
facto de o MFA ter integrado o governo e o facto de não ter havido “deserções”
para Lisboa na fase crítica do processo;
- a
rapidez do mesmo.
[1] Na Guiné
o MFA elegeu uma Comissão Central com 4 elementos de todos os ramos, sendo 2 do
exército, uma Coordenadora por cada Ramo e um secretariado executivo. Os
oficiais que integravam estas comissões eram: Comissão Central: tenente-coronel
Mateus da Silva, 1º tenente Pessoa Brandão, capitão Jorge Golias, capitão Faria
Paulino; Comissão Coordenadora da Armada: 1º tenente Pessoa Brandão, 1º tenente
Marques Pinto e 2º tenente Rosado Pinto; Comissão Coordenadora do Exército:
capitão Sousa Pinto, capitão Duran Clemente e capitão Jorge Golias; Comissão
Coordenadora da Força Aérea: major Sobral Bastos, capitão Faria Paulino e
capitão Albano Pinela. No secretariado estavam o 1º tenente Bouza Serrano, o
capitão Jorge Alves (FA), o alferes Barros Moura, o alferes João Teixeira e
alferes Celso Cruzeiro.
[2] cap
Jorge Golias, 1º tenente Bouza Serrano, cap Jorge Alves (FA), alf João Teixeira
e alf Barros Moura.
[3] Mário
Soares sintetizou assim a descolonização na Guiné: “Foi relativamente fácil
porque houve uma forte determinação do MFA na Guiné em cumprir as Resoluções da
ONU” – ISCTE – colóquio “Vozes da Revolução”, 16 de Abril de 2010.
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Observação de MDC.
Fotografias de Duran Clemente obtidas na cerimónia do primeiro aniversário da independência da Guiné-Bissau,em Madina do Boé,no dia 24 de Setembro já de 1974.Militares Presentes:Carlos Fabião,Hugo dos Santos ,Faria Paulino e Duran Clemente.A ultima é oferta do Ministro da Comunicação Manecas Santos.
Esta comissão central e geral é constituída depois do 25 de Abri.A primeira comissão de Capitães é eleita ainda em Setembro de 1973 :Major (recentemente promovido) Almeida Coimbra,Capitão Duran Clemente,Cap. Matos Gomes e Cap.Antonio Caetano pouco depois substituído pelo Cap.Sousa Pinto.Esta comissão funcionou sempre até ao 25 de Abril já tendo agregado elementos da Armada Comandantes Marques Pinto e Pessoa Brandão e de Força Aérea Capitães Jorge Alves e Francisco Paulino.
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