sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O TEMPO ARDE Carlos Barbeitos Amigo

Homenagem ao Carlos Barbeitos )escrita maravilhosa da filha Diana Pimentel Barbeitos) ao Homem Amigo ....homem franzino mas grande de alma ...que mais se pode dizer.....posso dizer.Fazes -me falta.Fazem sempre faltam Amigos como tu....Ainda agora pensava ir à Galiza estar por aí contigo....desabafarmos.!!!Abraço à nossa "terra .mãe"---MDC.
o tempo arde
[ para os meus irmãos, pelo nosso pai. ]
Sei que não vou saber escrever-te. Sei que estas são fracas palavras para ti, por ti. Morreste. Escrevo-te em falha, em falta. Há um mês, ontem, para sempre, começava a acabar a vida, a tua, a nossa.
Os relógios de casa – a que davas corda, dia a dia – pararam um a um; horas, minutos, segundos anulados. Manhãs, tardes, noites suspensas como o pêndulo quieto do relógio da cozinha. Os teus e os meus lentos e leves passos eram então a medida do tempo que se perdia, da dor que crescia.
Havia incêndios na serra (intuiste, ainda). Havia em ti um incêndio interior. Nem a promessa de trovoada pela madrugada atenuava o cheiro a terra queimada por dentro de ti e sob o chão da nossa vida a ruir.
O ar parou, murmuraste. Pousei muito leve a minha mão sobre o teu peito, a respirarmos a um só compasso, a tentar ensinar-te o que o teu corpo perdia. Dá-me um abraço, pedi-te; pensei poder guardar-te inteiro, ainda, dar-te o ar em mim. Falharam-te os braços até então sempre fortes sempre abertos sempre nossos.
Foste para longe de casa. A esperança segurava-nos e abandonava-nos e segurava-nos e abandonava-nos (aos filhos, aos amigos, aos teus companheiros e às tuas companheiras, contigo sempre, como tu sempre com todos). Um dia durou um mês, uma hora um dia. Duros dias (pouco, ainda).
Uma tarde os teus óculos partiram-se e a pilha do relógio cansou-se. Não o sabia então: o temor, o terror, o susto, o sobressalto estavam ainda a começar. Um tubo a invadir os teus pulmões carbonizados, a boca, o nariz, as veias tomados por objectos estranhos, os sentidos anulados, a tua voz silenciada, os braços sem pulsar, o sangue a escapar de ti, tu inteiramente nu do que foste, agora só um lençol, a respiração por fora de ti (o som, o horror), as máquinas, todos os sinais a cada dia menos vitais e nem fio de vida em ti.
Nós do outro lado de uma espécie de vida – ainda não sabemos qual nem como sem ti – vazios à espera da espera de quê? – sem saber onde tu. Sim, o lugar tinha um nome, cuidados intensivos (eu senti então – não disse – que merecias cuidados que se dissessem de outro modo porque o teu sempre foi um cuidado delicado e dedicado, em reserva e pudor, nas palavras, no amor, na perda, na dor).
Conta-me uma história, tinhas-me pedido numa das madrugadas antes de. Contei-te histórias que me contaste tu, que toda a vida vivemos. Que aprendi a ler à tua secretária ao som do disco de vinyl em que Leonard Bernstein ensina os sons e as vozes de ‘Pedro e o Lobo’ e que Prokofiev me parecia o nome de um amigo.
Lembrámo-nos do corpo forte da nadadora da família a atravessar sem temor o Minho, das ameixas que eu e a Catrineta lanchámos no telhado da coelheira, dos coletes salva-vidas para andarmos de barco a remos rio Minho acima, dos pic-nics e dos bailes de Agosto ao som do gira-discos (agora mudo), do complicado comboio (agora desmontado) que construíste no sótão para e com o nosso irmão, lembrámo-nos da sagração da primavera com que celebrámos a Mada coroada de flores da quinta (e tu a trautear ‘As quatro estações’ de Vivaldi), dos mergulhos de verão da Mada e da Maggie no tanque (hoje vazio), das pescarias no rio Mouro com as catraias, dos aviões e dos barcos, modos de partir que toda a vida escolheste e com paciência construíste como promessa de liberdade.
Não sabias o desamor (guardaste cartas e fotografias por mais de cinquenta anos; o mesmo amor, surpresa, ternura do primeiro olhar, da primeira paixão, de todas as palavras e de todas as perdas – sem um lamento audível). Amaste amar, amaste muito e muitos, amaste a vida.
Partimos, como tu, da quinta onde a vinha foi cultivada pelas tuas mãos; faltar-nos-á a vindima deste ano, por décadas, para toda a vida. Não guardei entre os dedos um punhado de terra: a terra à terra pertence, ensinaste-me. Sei que moro em terra em corpo de ninguém.
‘É o fim, filha’; acreditei em ti, como sempre.
Sinto saudades do passado contigo futuro. Do futuro de ti.
O tempo arde. Para sempre.   Diana Pimentel (Barbeitos)

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